O caso Pingo Doce rapidamente resvalou para uma histeria que não anda longe, em termos de impacto, das anódinas crónicas humorísticas do Ricardo Araújo Pereira na Rádio Comercial. Arrancam-nos umas boas gargalhadas e depois passa. Tem sido assim com imensos casos em que as pessoas se indignam muito para dessa indignação não serem retiradas consequências algumas. A discussão está logo à partida inquinada pelos preconceitos sectaristas que levam os “parlamentares” a tomar o partido de uns em detrimento de outros, como se tudo tivesse que obedecer a uma lógica maniqueísta. Uns são pelos patrões, outros são pelos trabalhadores, outros são pelo povo, essa massa indefinível que tanta dor de cabeça dá.
Fala-se de atentado à dignidade humana, esquecendo-se que milhares de pessoas aderiram voluntariamente a esse atentado. A dignidade humana dos portugueses é a mesma que permite Cavaco 30 anos no poder, faz do Ídolos um dos programas televisivos de maior audiência, elege Salazar o mais importante português de sempre, etc, etc, etc… Sejamos honestos, os portugueses são quem mais tem atentado contra a sua própria dignidade. Estamos a falar de um povo que todos os anos manda dezenas de mulheres para o cemitério à conta de porrada doméstica, estamos a falar de um povo que se comporta ao volante como militares de metralhadora na mão em palco de guerra. Num contexto de incivilidade como este, promovida por um Estado negligente que vem transformando a educação e a cultura, pilares básicos do mundo civilizado, numa mercadoria tão facilmente saldável quanto os produtos que desapareceram das prateleiras do Pingo Doce, é extremamente difícil falar de atentados à dignidade humana.
Também nos falam de um regresso ao terceiro mundo, como se o terceiro mundo não estivesse entre nós todos os dias, manifestando-se em comportamentos, atitudes e opções que, ao passarem despercebidas, nos afundam ainda mais na apatia mórbida que vai corroendo pequenas (mas árduas) conquistas que permiteam falar de progresso nesta sociedade. O que este caso tornou evidente, mais uma vez, como se fosse necessário clarificá-lo agora, é que muitos portugueses sentem-se mais motivados a baterem-se vigorosamente por uma promoção do que pelos seus próprios direitos. Num país a saque não é de estranhar que assim seja.
Mas não duvidem os ingénuos que vieram falar da exploração das necessidades e de fome que os verdadeiros necessitados e esfomeados não puseram ali os pés, porque esses nem 50€ têm para poderem trazer 100€ de compras para casa. Falar de terceiro mundo é, neste contexto, perceber que vivemos num país em que a vitória do Real Madrid ocupa meia hora de um telejornal e o desaparecimento de Fernando Lopes um mero minuto. Falar de terceiro mundo é perceber que o valor do consumo superou, na nossa sociedade, qualquer outro valor. Falar de terceiro mundo é perceber a profunda crise ética, moral, para que temos vindo a caminhar como os cegos de Brueghel, cada vez mais brutos, cada vez mais estúpidos, cada vez mais sós.
Já aterrámos no fundo do abismo, isto não é de agora. O abismo é esta crise onde o viver foi substituído pelo sobreviver, o ser pelo ter, o necessário pelo supérfluo, o espiritual pelo material, é uma crise onde falar de ética empresarial é já estar contra o patronato e ser um perigoso comunista, como se todos os agentes operantes numa sociedade não fossem responsáveis pela evolução dessa mesma sociedade. Daí que a maior crítica que possamos fazer ao Pingo Doce e aos seus militares do marketing, certamente todos eles respeitáveis trabalhadores, é a de se terem borrifado para a ética empresarial e para as responsabilidades sociais de uma empresa. Seria bem feito que um dia destes os clientes e os próprios trabalhadores do Pingo Doce, as verdadeiras vítimas desta acção desumana (terem sido sujeitos a trabalhar naquelas condições é inquestionavelmente desumano), também viessem a borrifar-se para os donos do Pingo Doce, obrigando-os a emigrar para onde eles poderão competir com as suas regras típicas de um mercado selvagem. Selvagem de incivilizado.
4 comentários:
Henrique:pergunto-me se eles fizeram o mesmo na Holanda, onde estão sediados ou na Colômbia, fugindo ao pagamento de impostos em Portugal...Vi esta noite a Quadratura do Círculo e gostei-nem sempre sucede- de ouvir o Pacheco pereira sobre o assunto.Suponho que repete 6ªfeira, amanhã, pelas 13 horas.Se puder, veja.
Acredito que é de facto um atentado à dignidade individual. É claro que, como dizes, as pessoas foram de livre e espontânea vontade. Também é verdade que aqueles que lá foram são do grupo que tem 100 euros para gastar em compras para casa; tal como nós, os que temos blogues e escrevemos sobre o assunto (como eu escrevi) e comentamos os textos dos outros (como eu estou a fazer). Pois as pessoas que não têm 100 euros para fazer as suas compras, mesmo que seja em promoção, não têm internet em casa, não andam a “passear” pelos blogues a comentar e a escrever. Essas pessoas apenas se lamentam não ter os 100 euros (ou até mesmo os 50) para terem ido ao Pingo Doce e aproveitar o que davam.
Mas a dignidade foi ferida. Nisso não tenho dúvidas. A minha, que não fui lá, também. E não quero aqui por em causa a questão do 1º de Maio (embora pense que foi uma provocação). Prefiro pensar no seguinte: eles fazem estas promoções e, de certeza, continuam a ter lucro; podemos, então, imaginar o lucro que eles fazem sem promoções “e outras complicações”. E é isso que me deixa indignado. É nesse ponto que penso que a dignidade é ferida.
É claro que ver gente a açambarcar daquela maneira não deixa de ser indigno. Talvez nos tenham levado a isso. Não me sei explicar melhor. Mas que é triste, é.
Acutilante, sincero e irónico como é teu apanágio.É sempre um prazer ler-te Henrique.Beijinhos para ti e para as "tuas" mulheres ;-)Patrícia Bettencourt
Concordo com tudo, mas também li o assunto como algo de muito grave: o povo português tem estado muito passivo perante o agreste momento em que está a viver. Os espanhois vão para a rua, os gregos vão para a rua protestar. Os portugueses foram para o Pingo Doce no 1º de Maio por causa de uma promoção de 50%. O que é isto? Declaração de guerra de um grupo económico ao poder político ou à situação do país? Querem mostar que têm o poder de movimentar as massas e gerar o caos, porque vendem os bens essenciais? Depois, a Asae investiga, prova que houve dumping e têm de pagar 30 mil euros. Ridículo. Absurdo. A resposta do governo é frouxa. No meio disto, os portugueses que foram estiveram em filas à espera 5h ou 6h para comprarem a metade do preço bens essenciais. Comida. Quem lá esteve tinha necessidade disso, ninguém fica numa situação dessas sem precisar. Quem trabalhou nessas condições foram os precários como já se sabe. Os herois. Se foi declarada uma "guerra" por parte de um grupo económico ao poder político e à situação actual do país, não consigo se quer imaginar as consequencias disto. Apenas vejo que as pessoas foram manipuladas para uma se gerar caos. É assustador.
Enviar um comentário