Calma, ainda não é o fim do mundo. Mas 2012 tem sido, sem dúvida, uma razia. Agora foi-se Fernando Lopes, autor de um Belarmino (1964) que me marcou para a vida. E de outros, tais como as adaptações da Crónica dos Bons Malandros (1984) ou d’O Delfim (2002). Gostava de ouver Fernando Lopes, estou a ficar mais sozinho, as pessoas que gosto de ouver neste Portugal-latrina-irrespirável estão a desaparecer. Belarmino inspirou-me um texto publicado no número 07 da revista Callema (Novembro de 2009), a que trazia, precisamente, Fernando Lopes na capa. Recupero o texto, em jeito de memória:
UMA BOLA-DE-BERLIM E UM COPO DE LEITE
«É realmente uma desgraça ter nascido em Portugal. Sentimo-lo quando nos nasce um filho. Parte para a vida em desvantagem» (Ruy Belo). Aqui tudo é ínfimo e efémero. Aqui, logo que nasce, tudo nasce com ferrugem. Tu és o meio de nada, eu sou o nada do meio. Aqui não importa, não interessa. Aqui o esquecimento marcha e pronto. Somos o esquecimento a marchar, em solene parada, pelas auto-estradas da (des)informação. Aqui o que importa só importa a quem importa. A quem não importa, bate-se com a porta. «Belarmino podia ter sido grande», sentencia o ex-manager. «Se tivesse nascido noutro país?» - indaga o entrevistador. Mas naquele tempo, como hoje, as medidas e as grandezas neste país eram relativas. Elas estavam relacionadas com a capacidade de resistência dos combatentes, não se reduziam ao star system que torna universais vedetas quase sempre temporárias. Porque depois o tempo encarrega-se de as rasurar da memória colectiva. Neste sentido, Belarmino Fragoso podia simbolizar qualquer um dos resistentes – um boxeur nesse combate contínuo que é a vida dos espíritos vadios -, dos guerreiros, dos batalhadores. Ele podia significar, inclusive, um cinema em estado de resistência ao fundo convencional, moralista e censório das academias instaladas. Não serão por acaso aquelas cenas de rua, o plano do porteiro, Belarmino a passear junto às salas da época, lembrando que o boxe começou quando ele quis arranjar dinheiro para ir ao cinema. Passados todos estes anos, como dialogar aqui e agora com Belarmino (1964), o filme de Fernando Lopes?
Em 1959, Les Quatre Cents Coups foi apresentado no festival de Cannes. A data assinala o advento da Nouvelle Vague francesa. Uma Nova Vaga portuguesa terá nascido com Belarmino. De resto, encontro algumas coincidências entre o boxeur português e o jovem rebelde de François Truffaut. Também o malandro de A Bout de Souffle podia ser chamado à liça. Sento-os numa mesa de café, os três à conversa, e o que observo são personagens vivas e marcantes, vagabundos, cada um à sua maneira, que desafiam com o corpo o sempre irritante aqui. Mas porque irrita o que irrita, aqui? Porque comove o que comove, aqui? Porque ecoa o que ecoa, aqui? Porque o aqui vem de acolá e o acolá é também já o aqui. Digamos que, na verdade, não há aqui. Aqui é tudo um acolá em construção, é um diálogo, uma entrevista, uma encenação. Quem de acolá chegar aqui, quem de acolá vier para aqui, vem por quê? Que motivos trará aqui os que vêm de acolá? ConfirmArem, reafirmarem, verificarem o quanto aqui são o aqui de acolá. Redondo, este discurso? Talvez... Mas já alguma vez te perguntaste, caro leitor, o que fazes aqui? Por que não ficas do lado de lá, do lado de fora, do lado do leitor? Por que insistes em penetrar o texto como o espectador penetra a película? E por que te necessita tanto, a ponto de não resistires, o dizeres-te daqui ao mesmo tempo que te dizes de acolá? Por mal que te pergunte, lembras-te de alguma vez os olhos se te encheram de lua? Algum dia o peito se te rebentou para dentro em fogos-de-artifício? As pálpebras ardem de emoção sempre que entramos em diálogo com uma obra que nos afirma o aqui. Há uma distância que separa o criador da obra, a obra do, digamos assim, espectador. Mas essa distância é como que ultrapassada por uma espécie de simpatia, por um reconhecimento que a obra gera ou não naquele que desfruta dela. Qualquer um dos filmes supracitados é de há muito. No entanto, parecem ser de agora, do tal aqui, porque lograram traduzir, testemunhar e reflectir não um tempo, mas o tempo, sentimentos com os quais facilmente nos identificamos para lá das horas.
Com Belarmino, engraxador, ardina, colorista de fotografias, segurança, biscateiro, boxeur, comovemo-nos e, de certa forma, identificamo-nos. «Não era o Belarmino Fragoso que estava a jogar, era apenas a necessidade de ganhar quinze contos». Aí estamos no lugar da sobrevivência, um combate travado por muitos, por vezes apenas com uma bola-de-berlim e um copo de leite no estômago, Um combate travado com os punhos e com o sangue, com a cabeça e com os olhos, com o corpo todo, um combate que sempre foi o nosso, o dos portugueses com uma vida de dificuldades, o dos obstinados, aqueles que teimam em fazer alguma coisa, em criar para lá dos limites impostos pelas bengalas dos padrinhos, daqueles que nasceram sem apelido e, por isso, tiveram de se fazer à vida. Ainda hoje, neste país de caciques e de apadrinhados, a sociedade funciona por exclusão de partes. São os cachecóis em hélice, os cânticos do guerreiro, a afinada pantomima das palmas. São os devotados gritos da turba, a comunhão de um símbolo e um pingo de suor escorrendo-nos das fontes aos ombros. E nesta correria esquecemo-nos da brasa que grelha o mundo. Porque há também a indiferença, o deixa andar, o soslaio. O esquecimento cresce à medida que a fantasia toma o lugar dos pés. Olha o soco em falso como um poema falhado. Olha o murro nas arcadas em sangue. Olha o tapete como a batalha da folha em branco. «Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?» (Alexandre O'Neill) É um combate para trezentos leitores. Olhemos, pois, a defesa instintiva como um verso caído do coração, o drible como uma metáfora. Vejamos no soco certeiro, naquele que levanta a plateia em participado delírio, vejamos nesse soco um caminho para a perenidade. Mas nunca esqueçamos, há horas em que o melhor é mesmo passar a bola. Passar a bola assim como quem passa a palavra. Porque o aqui é um jogo, o jogo que nos predispusemos jogar indisciplinadamente, com as nossas próprias regras.
Há um preço a pagar pela indisciplina: a solidão. O filme de Fernando Lopes é exímio enquanto testemunho desse preço. Belarmino começa por ser filmado a treinar isolado dos restantes pugilistas. As cenas no balneário vazio, no corredor fantasmagórico que dá acesso ao estádio sem público, são o rosto desse preço. São cenas perenes num país ínfimo, são cenas que combatem a efemeridade do mero espectáculo. A solidão apenas é quebrada quando o nosso anti-herói aparece na companhia da família, sobretudo da mulher, que lhe inspira elogios ternos e amáveis. E depois, quase a terminar, o contraste entre a Lisboa do cabaré e a Lisboa do clube de jazz, o contraste social que reforça esse clima de isolamento e de solidão envia-nos para uma verdade das personagens que não deixa de ser minada ao longo do filme. Godard dizia: «De uma maneira geral, a reportagem só tem interesse quando é inserida na ficção, mas a ficção só tem interesse quando se verifica no documentário». Esta relação entre ficção e realidade percorre Belarmino, uma espécie de documentário encenado onde se trava um combate permanente entre entrevistador (Baptista-Bastos) e entrevistado (Belarmino), uma mise-en-scene que sugere um debate irreal entre ex-manager e boxeur, afinal, um «cinema verdade» em «estado de fraqueza». Vá lá, confessemo-nos de uma vez. Mesmo por trás da palavra, o ego enche-se quando o soco é certeiro. Mas às vezes o corpo vai às cordas, o murro sai em falso, a alma esvai-se pelo tapete. Sempre houve muitas derrotas a cadenciar a vida dos heróis. E o pretexto para o filme sobre Belarmino é, precisamente, uma falsa-notícia sobre uma eventual derrota. Verdade e falsidade estão no ringue desde o início, é esse, precisamente, o principal combate do filme.
Passados todos estes anos, como dialogar, então, aqui e agora, com Belarmino? Dirijo-me ao eventual leitor sem qualquer formalidade. Sabes que às vezes a bola vai-te ao poste. É que lá fora, lá fora é bem pior. Rostos queimados, corpos degoladas, cidades extirpadas. É do baril. Tudo porque a presunção deforma a vontade das forças que decidem por nós o destino do mundo. Se fôssemos nós a mandar, seria tudo perfeito. Se fosse tudo como nós queremos, seria perfeito. Mas não é. Por isso mesmo vens aqui. Por mais nada, vens aqui e por aqui vais ficando. Milhões de anónimos votados à fome e à miséria jamais deixarão de ser anónimos. Guerras que pretendem resolver nunca saberemos bem o quê. Guerras que pretendem reorganizar, destruindo. Reformar, desfazendo. Guerras que pretendem salvaguardar-nos de vírus menos ameaçadores que os remédios. São as nossas lutas, aqui. A luta por uma verdade constantemente ameaçada pela mentira. Agora. Guerras ínfimas, pequenas, as possíveis. Nós, os ingénuos, sabemos que neste jogo de poder apenas duas partes sairão vencedoras: o ódio e a incúria. Sob dissimuladas capas, assistiremos perpetuamente aos desfiles de medo e de morte que a guerra, o motor do poder, imprime. Calados. Resignados. Quietos. Que se matem, matando-se. Que se nomeiem, nomeando-se. Que se afrontem, afrontando-se. Que se assassinem, assassinando-se. Os nossos filhos saberão dar valor ao nosso silêncio. Mas nós jamais saberemos dar valor à arte de fingir que não se vê, que não se sabe, que vai tudo correndo na boa... É do baril. Fica sabendo: isto não tem nada que ver com lutar. Isto é apenas e tão-só: estar aqui.
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