sexta-feira, 4 de maio de 2012

SUTTREE





Escritor reservado e não muito prolixo, Cormac McCarthy (nascido em Providence, 20 de Julho de 1933, e baptizado Charles McCarthy) estreou-se em livro no ano de 1965. Suttree, originalmente publicado em 1979, foi o seu quarto romance. Esta edição da Relógio d’Água tem tradução de Paulo Faria, que também assina um proveitoso prefácio, e foi editada em Fevereiro de 2009. Suttree é um romance exigente, em muitos pontos comparável ao Ulisses de James Joyce. Apesar da estrutura não ser tão complexa, também aqui os tempos se misturam em torno de uma personagem central e das suas deambulações por uma cidade. Neste caso a cidade é Knoxville. «A Knoxville desaparecida que Cormac McCarthy descreve nestas páginas (e muitos a compararam já à Dublin de Joyce em Ulysses ou à São Petersburgo de Dostoiévski em Crime e Castigo), todavia, nunca existiu. Poderíamos ter vivido nesta cidade em plenos anos cinquenta e nunca teríamos visto a urbe medieval que McCarthy aqui nos pinta, sulcada por uma Cloaca Maxima (assim mesmo, em latim, como tantos outros termos e expressões nesta língua que coalham o texto do romance e lhe conferem o seu deliberado e inconfundível cunho arcaizante)» (p. 8). Esta Knoxville é, antes, um cenário que oferece terreno para personagens desamparadas, microcosmo povoado por gente tão excluída que parece improvável, bêbados e putas, sem-abrigo, um violador de melancias e um índio especializado na confecção de tartarugas, aquele tipo de gente de quem hoje se diz viver na mais inumana das condições, «feios, porcos e maus» que dão consistência à palavra ruína. A paisagem descrita com precisão fotográfica mostra-nos a imundície onde os corpos deambulam, despojos da vida quotidiana com existência própria, charcos, lixeiras, bairros degradados onde a sobrevivência resiste à razão de migalhas. Não satisfeito com uma descrição meramente visual, McCarthy acrescenta-lhe os cheiros: «o odos fétido das roupas mesclado com um vago fedor a whiskey» (p. 30), «odores intensos a resina de pinheiro e a estrume» (p. 107), «um cheiro intenso e ácido a fumo de lenha e a gordura e a peixe» (p. 237), «um odor a leite acabado de ordenhar» (p. 362), «um cheiro fétido, qual bosta a fritar» (p. 432)… Podíamos encher várias páginas com estas evocações dos cheiros, dos odores e das fragrâncias quase sempre fétidas e bafientas. Suttree refugia-se no rio quando pretende escapar à cidade, mas o rio que atravessa a metrópole, como o tempo atravessa a vida, transporta no seu leito os detritos, os excrementos, os restos, o lixo da urbe. Há nele uma permanente vontade de evasão. Começa na mudança para a casa flutuante junto ao rio e termina com o abandono da cidade. Recluso já não só de um passado sobre o qual não tem tempo para se perder em conjecturas e elucubrações, ele está preso a uma cidade que não lhe permite viver senão escapando sempre por um fio, no limite da sanidade, com os ossos à mostra sob temperatura agreste. As preocupações das pessoas que o rodeiam são básicas. Onde dormir? O que comer? Como escapar? E entre elas mistura-se o coração solitário de Cornelius Suttree, a sua percepção da tristeza e da amargura que contamina a terra, uma criatura onde a esperança foi consumida pelas chamas da angústia e se transformou em cinza. Ao longo das quatro estações que marcam o tempo da narrativa, encalhada no ano de 1951, vamos acompanhando esta criatura de aventuras várias, por vezes escatológicas e caricatas, outras vezes assombrosas, comos e fôssemos largados no meio de uma espécie de esgoto humano onde o corpo de tudo o que respira foi tomado por uma única necessidade: safar-se. Finda a leitura, também Suttree deixa dentro de nós um «grito meio estrangulado», um rastro de sangue que anuncia apenas uma boa decisão: partir para não mais regressar.

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