terça-feira, 12 de junho de 2012

GUIMARÃES, 2012


Trocámos as conservas ao Cais do Sodré, tornadas chique por um revivalismo pouco convincente, pela caldeirada de enguias junto à Ria de Aveiro. Muitos dos melhores momentos da nossa vida, que não são assim tantos, estão associados à composição de uma mesa. Suporta-a mais a boa conversa e a indispensável bebida, possivelmente, do que a qualidade das iguarias, embora o paladar, não sendo exigente, se agrave ou adormeça conforme o tempero. São conhecidos os efeitos. Um homem é aquilo que come, dizia o outro. Nem tanto ao mar, nem tanto à ria. O homem também pode ser a ausência de alimento, uma certa fome, a nostalgia dos apetites.

Ou então a ironia estampada na fachada duma ruína, algo encontrado pelo caminho sem ter sido necessário andar à procura. É quase sempre assim, o melhor vem de ser surpreendente. E depois, espantados, dizemos: o meu sonho seria caminhar sobre as águas, voar, querer falar e não conseguir, a Bardot aos 25, a Sophia Loren a qualquer época do ano, o meu sonho seria dar cabo do futuro do pretérito do indicativo em nome de um agora impossível de ser sonhado. A verdade é que as mulheres de outros tempos continuam a excitar-me mais do que as d'agora. São como as casas em ruínas, deixam-nos a imaginação aos saltos. E falava eu de revivalismos.

Palpite-nos o coração na direcção do futuro. Digamos que os tempos prestam-se à memória. Ai que bom que era quando… E aí paramos, metemos travão na nostalgia, ninguém precisa conhecer os crimes pelos quais estamos condenados. Enquanto passeávamos, já antes ou depois da caldeirada, não sei, entrámos numa loja onde um pássaro cantava. Desconheço a espécie. Pássaros, flores e história de Portugal sempre foram as minhas fraquezas. Com a diferença de apenas os pássaros me causarem temor. Mas não seus cânticos. Aquele palreava especialmente bem. Dir-se-ia um Pavarotti entre a passarada. Ao escutá-lo, pensei: olha se assim falássemos nós uns com os outros, não seria tudo mais compreensível e aceitável? Ao contrário, organizámos línguas e linguagens para andarmos todos a dizer as mesmas coisas por palavras diferentes discordando de tudo quanto se diz e se repete. A língua roubou-nos as penas, foi o que foi, e sem penas nenhum voo se logra.

Chegados ao berço, somos uma espécie de recém-nascidos com todos os receios já arrumados. Afinal pouco há a recear. Estamos convencidos de termos tomado o rumo certo, ainda que precipitados para o fracasso. É inevitável. Seja como for, agradam-me os vales onde as cidades cresceram rodeadas de sombra. E sobre elas mais me agrada ainda a velocidade do céu, com suas embaixadas na terra, em avenidas tornadas históricas sabe-se lá por que razão de que atrocidades aí cometidas. E gosto da água repuxada, mesmo que em lagos murados. Gosto de ver as rotinas por entre a água, como quem faz da fonte essencial da vida uma espécie de lente para tudo quanto seria dispensável, tivéssemos nós ainda sonhos.

Ficaram todos dentro de castelos antigos, muralhas que guardam fantasmas de sonhos desfeitos. Um ligeiro nevoeiro, conveniente. Andam por ali como sinais deixados ao acaso. Estimulam a memória e a fantasia, é certo, ao mesmo tempo que nos desviam do presente, para o qual somos chamados apenas quando nos pretendem cobrar por uma subida ao cimo da torre central. Também gosto de castelos e nunca o disse, sobretudo quando são de claras. Julgo que sobre esses nunca o João Miguel Fernandes Jorge escreveu.


Mas Deus é grande, há que ter esperança. Tem mais propriamente quatro metros de altura, foi feito com filtros de cigarro e criado por um tal João Leonardo. Está em exposição na capela do Paço dos Duques, temporariamente ocupado pela saudável inquietação da arte contemporânea. Estimulante contraste entre um passado tornado clássico e um futuro ainda contemporâneo. Além da criatura gigantesca, gostei especialmente de um vídeo de João Onofre e de uma escultura de Julião Sarmento. Mas havia mais: Rui Chafes, José Pedro Croft, Fernanda Fragateiro, Adriana Molder, Ana Pérez-Quiroga, Miguel Palma, Filipa César, Yonamine, João Louro, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira. Nomes, muitos nomes, tremendos nomes, pena que tenhamos de decorá-los, melhor seria que todas as obras ficassem anónimas como grande parte das expostas no Museu de Alberto Sampaio. Talvez tornar-se clássico seja isso mesmo, perder o nome. Ou prescindir dele em favor do tempo.


Não é preciso dar nome às casas. Damos nome às praças, aos largos, às ruas, mas só muito esporadicamente damos nome às casas. Não é preciso. Os números fazem a vez dos nomes onde se busca apenas abrigo. Novamente inclinados para o céu, reparamos no cuidado colocado na conservação. E falava eu de conservas, e falava eu de revivalismo. A cultura carece de conservação. Um país não tem de ser uma lata de conserva, mas a cultura carece de conservação. Para que por vezes possamos olhar à nossa volta e nos sintamos identificados, integrados, acolhidos.


Foi junto ao Padrão do Salado, ao pé da Igreja de Nossa Sra. Da Oliveira, que o tempo começou a acelerar. Não irei repetir o que já foi pronunciado sobre o assunto. Apenas lembrar o seguinte: eu vi-me a mim próprio, ali mesmo, na noite anterior, passeando com um cigarro segurado pelas mãos cruzadas atrás das costas, eu vi-me ali mesmo, eu próprio, daqui a 40 anos. Chamem-lhe profecia, premonição, oráculo, chamem-lhe visão de um tonto, mas era eu. Estava careca como o meu pai, os poucos cabelos já todos brancos, curvado como um velho livreiro reformado. Caminhava lentamente, arrastando com pesar as pernas, olhando para a calçada como quem vê em cada cubo de pedra um enigma por decifrar. E trazia aceso um cigarro que nunca levava à boca, deixava-o a queimar atrás das costas enquanto à minha volta, já meia-noite feita, grupos incontáveis de adolescentes bebericavam seus engates. Ali andava eu, sozinho, a micar as sombras. E a olhar para mim, dois amigos no corredor dos quarenta, ainda caminhando na direcção da porta, falando de tudo e mais alguma coisa como sempre falaram: discordando, pois a discordar o tempo passa mais depressa e o brandy sabe melhor. E eu que por ali andava quarenta anos depois de mim mesmo, perguntava-me: por onde anda agora o meu amigo de outrora?


É fácil de adivinhar, os amigos não esmorecem, são para a vida. Mesmo ausentes largos tempos, reencontram-se. Sentam-se a uma mesa, na tasca mais brejeira, e partilham malgas de vinho verde tinto, um prato de nozes e amêndoas oferecido pela casa; ao fundo, as compotas sedutoras e, entre os dois, milhares de aventuras para serem recordadas. Adiam-se os portos numa festa popular, uma travessa de leitão e negalhos para o caminho. Depois a vida retoma os passos do inferno, mesmo que continuemos a cantar como os pássaros da Ria. Enjaulados, mas ufanos.


Fotografias: Mário Calado Pedro.

5 comentários:

je suis...noir disse...

Eu sei que é estúpido (não é falta de respeito pelo texto e pelas fotos) mas gostei mesmo foi dos castelos de claras:)

hmbf disse...

iluminam qualquer espécie de treva.

Mário Pedro disse...

Gosto!

Sandra R. disse...

"É fácil de adivinhar, os amigos não esmorecem, são para a vida. Mesmo ausentes largos tempos, reencontram-se. Sentam-se a uma mesa, na tasca mais brejeira, e partilham malgas de vinho verde tinto, um prato de nozes e amêndoas oferecido pela casa..."

que bonito, o texto e as fotos. e agora tenho de provar qie não sou um robô e sai-me um azulejo com o número 9... parece o número de uma porta de uma casa sem nome. :)

hmbf disse...

:-)

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