domingo, 7 de outubro de 2012

AS MINHAS LEMBRANÇAS OBSERVAM-ME

Passado um ano sobre a consagração com um tardio Prémio Nobel de Literatura, Tomas Tranströmer (n. 1931) chega finalmente às livrarias portuguesas. A Sextante edita-lhe o único livro em prosa que se lhe conhece: As minhas lembranças observam-me (Setembro de 2012), aqui acrescentado por uma dezena de primeiros poemas e por um posfácio saído da pena de Pedro Mexia, enquanto a Relógio d’Agua deita a mão a 50 Poemas (Julho de 2012) com tradução de Alexandre Pastor. Vamos ao primeiro. Escrito quando o autor contava sessenta anos, percorre os tempos da primeira infância até à juventude. Organizado em breves capítulos temáticos, pode ser lido como um livro de memórias (ou lembranças) onde mais do que reconstruir o passado se procura perceber o que terá havido nesse passado a contribuir decisivamente para aquilo em que o autor se tornou: poeta. As lembranças de Tranströmer estão, por isso, expurgadas de quaisquer aspectos superficiais, não deixando de parecer desinteressantes a quem busque nelas tudo o que elas resolvem omitir. Não há aqui grandes factos nem grandes feitos, nenhuma maldade confessada nem gestos terríveis, há uma ausência de êxtase que coloca o texto numa dimensão deveras paradoxal: buscando o essencial, revela-se banal. Isto percebe-se logo no primeiro texto: «A minha recordação datável mais antiga é a recordação de um sentimento. Um sentimento de orgulho. Fiz três anos, e disseram-me que isso era muito importante, que agora eu era grande. Estou deitado na cama, num quarto luminoso, e levanto-me, desço da cama, extraordinariamente consciente de que estou a ficar crescido. Tenho uma boneca a que pus o nome mais bonito que consegui inventar: KARIN SPINNA. Não a trato de uma forma maternal. Ela é uma amiguinha, ou uma paixão» (pp. 11-12). O que há de revelador nesta primeira recordação? Provavelmente nada, a não ser tratar-se da primeira recordação datável. A matéria da memória tem esta plasticidade, quanto mais lhe mexemos mais a deformamos e, desse modo, a adulteramos, tornando o passado mais numa construção abstracta do que num repositório de factos impossíveis de reconstruir. As aproximações tendem a deturpar a verdade se não formos cuidadosos, se não mantivermos aquela distância de nós próprios que se impõe sempre que procuramos autoavaliar-nos. A forma como o poeta descreve o ambiente familiar, marcado desde cedo pela separação dos pais e pelo proteccionismo materno, recordando pequenos episódios domésticos mais ou menos violentos (uma briga entre vizinhos ou o ter-se perdido nas ruas de Estocolmo), denota um ambiente onde não se empolam dramas e se ocultam tragédias por debaixo de uma capa de naturalidade alicerçada na norma e numa aparente ausência de emoções. Ora, quem leia com atenção estes textos, apercebe-se de que o poeta surgiu, precisamente, de uma espécie de reacção a este ambiente, primeiro através do fascínio provocado pelas figuras gigantescas do Museu de História Natural, a penetração nos grandes mistérios da natureza, depois a própria condição, anormal à época, de filho de pais divorciados, a consciência da diferença apontada quer por adultos, quer por colegas da escola, a inclinação para paisagens geográficas distantes, nomeadamente as de África, encontradas nos livros da biblioteca do centro cívico… São estas lembranças que nos levam aos primeiros anos do liceu Södra Latin, onde Tranströmer se iniciará na escrita de versos. Mas ainda antes disso ter acontecido, a angústia dos quinze anos materializada naquilo a que talvez chamássemos hoje uma crise de pânico: «A dimensão mais importante da existência era a Doença. O mundo era um imenso hospital. Via diante de mim pessoas de corpo e alma desfigurados. O candeeiro aceso esforçava-se por afastar os seus rostos pavorosos, mas às vezes eu dormitava, as pálpebras caíam, e aquelas faces medonhas tomavam-me de assalto» (p. 66). A sensibilidade que aqui emerge é uma sensibilidade acossada pelo medo, já anteriormente sugerida noutras experiências, embora nenhuma delas com a ênfase que o poeta coloca neste episódio em particular. É precisamente o último episódio antes da iniciação na escrita de poesia modernista, em contraposição às formas rígidas da poesia clássica. Uma escrita que surge, também, da experiência reveladora que a tradução proporciona: «Esta alternância entre o medíocre e trivial e o vigoroso e sublime ensinou-me muito. Era a condição da poesia. Era a condição da vida» (p. 74). No fundo, é esta condição o que mais se evidencia nestas pequenas lembranças e nos primeiros poemas coligidos neste agradável volume.

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