domingo, 14 de outubro de 2012

MORTE DE UMA ESTAÇÃO

Está um dia perfeito de Outono. Céu bastante nublado, temperatura suportavelmente baixa, chuva miudinha. Avistam-se queimadas ao longe, o cheiro das lareiras já anda no ar e a terra atapeta-se de folhas secas. Um dia à medida de Antonia Pozzi, poetisa milanesa de malogrados outonos. Nascida em 1912 no seio de uma família burguesa, acabou por se suicidar, com apenas 26 anos, ingerindo uma quantidade fatal de barbitúricos. A sua poesia ficou praticamente inédita durante variadíssimos anos, sendo manipulada pelo pai como em vida terá sido a própria poeta. Ainda hoje se mantém uma desconfiança crítica perante a obra de Antonia Pozzi que a remete para uma certa marginalidade no contexto da poesia italiana. Morte de Uma Estação (Averno, Fevereiro de 2012), colige alguns poemas, com tradução de Inês Dias, prefácio de José Carlos Soares e posfácio de Matteo M. Vecchio. É precisamente no posfácio que encontramos uma síntese da controvérsia crítica que tem rodeado esta poesia, devendo ter-se em conta que as primeiras edições dos poemas de Antonia sofreram intervenções paternas que, em certa medida, deturparam o terreno existencial que deu azo aos versos. Refere Matteo M. Vecchio que «a vida de Pozzi põe-se exemplarmente no centro de problemáticas existenciais (…) como o dissídio Geist/Leben», assumindo a obra, «neste sentido, tonalidades – mas não se reduzindo a elas – testemunhais» (pp. 155-157). Erigida num clima existencial conflituoso, o corpo poético de Antonia Pozzi reflecte esse duelo permanente, e irresolúvel, entre as origens burguesas e a consciência social, entre a vida espiritual e as exigências da vida material. Acrescentem-se a estes antagonismos alguns factos biográficos e mais facilmente entenderemos a vertigem que se esconde por detrás da poesia de Antonia Pozzi. No prefácio, José Carlos Barros recorda um avô depressivo e uma tia que também se suicidaram, uma paixão precoce por um professor (ferozmente reprimida pelo pai da autora) e a importância decisiva do ambiente cultural vivido na Regia Università di Milano, nomeadamente em torno de Antonio Banfi, que aí leccionava Estética e História da Filosofia. A influência de Banfi sobre os seus alunos terá sido decisiva na vida de muitos, alguns dos quais se juntaram em publicações colectivas de cunho filosófico. No entanto, a filosofia de Antonia Pozzi assumia a forma vertical dos poemas. Foi na poesia que ela encontrou o melhor método para a expressão das suas reflexões, permitindo que para os poemas confluíssem sentimentos, estados de alma, conceitos e premissas filosóficas num só corpo onde a estética e a ética se uniam. José Carlos Soares refere que «há uma continuada luta em Antonia, um esforço de superação dos limites, na sua visada conquista de autenticidade: a elevada condição social a que pertence e lhe dá má consciência no confronto com a miséria dos bairros periféricos que visita e onde presta trabalho solidário; a opressão política do regime fascista; a distância dos seus amigos intelectuais perante a sua poesia que tomam como exercício de catarse e pouco mais» (pp. 18-19). Se é verdade que em muitos momentos encontramos nestes poemas vestígios de uma necessidade catártica, menos verdade não será que eles reflectem, também mas não só nesses vestígios, uma consciente intensificação do sentido último da vida. Daí que, muitas vezes, o que nos parece um retrato naturalista (Pôr do Sol Inquieto, Ameaças de Temporal, Regresso ao Crepúsculo, As Flores, etc.), se revele uma expressão profunda de um estado existencial com ligações directas quer à experiência do mundo, quer à reflexão que essa experiência do mundo exige:


PAUSA


Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.

A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.

Recorrendo amiúde a estas comparações entre estados de alma subjectivos e os exemplos da natureza, Antonia Pozzi logra estabelecer uma relação que lhe permite compreender, na sua essência, a inquietação, o desalento ou o desassossego que o mundo imprime no ser. Não são meras projecções sentimentais, são reflexos de uma consciência profunda desse domínio do tempo sobre as coisas (evidente em poemas como Novembro, Tempo, Precoce Outono ou Morte de Uma Estação) e do fim último que a tudo se reserva: a morte. É por isso que uma leitura superficial destes poemas pode induzir em erro aquele que neles leia apenas a expressão sentimental de um sujeito problemático, deixando na penumbra a revelação de um problema para o qual não se vislumbra solução por ser esse problema solução e sentido de si próprio:

CANTO DA MINHA NUDEZ


Olha para mim: estou nua. Da inquieta
languidez da minha cabeleira
até à tensão fina do meu pé,
sou toda de uma magreza amarga
envolta numa cor de marfim.
Olha: como é pálida a minha carne.
Dir-se-ia que o sangue não a percorre.
O vermelho não transparece. Apenas uma lânguida
pulsação azul se esbate no meio do peito.
Vê como tenho o ventre côncavo. Incerta
é a curva das ancas, mas os joelhos
e os tornozelos e todas as articulações
são escanzelados e duros como os de um puro-sangue.
Hoje, deito-me nua, na limpidez
da banheira branca e deitar-me-ei nua
amanhã sobre um leito, se alguém
me quiser. E um dia nua, só,
estendida de costas sob demasiada terra,
hei-de estar, quando a morte me tiver chamado.

1 comentário:

Anónimo disse...

tão lindo, tão lindo... (o segundo poema, principalmente)


(je suis noir)