quinta-feira, 18 de outubro de 2012

OH VÓS QUE VOS DIZEIS LIVRES-PENSADORES, FILÓSOFOS DE MEIA TIGELA, PORQUE NÃO SEGUIS O VOSSO CAMINHO ATÉ AO DESTINO?


São João do Estoril, Cascais. 2011.


Raskolnikoff passou no hospital quase toda a Quaresma e a semana da Páscoa. Depois de restabelecido, lembrou-se dos sonhos que tivera durante a doença. Pareceu-lhe, então, ver o mundo inteiro assolado por um flagelo terrível e sem precedentes que, vindo do fundo da Ásia, caíra sobre a Europa. Todos deviam morrer, salvo um pequeníssimo número de eleitos. Vermes microscópicos, de uma espécie até então desconhecida, introduziam-se no organismo humano. Esses corpúsculos, porém, eram dotados de inteligência e vontade. Os indivíduos infectados ficavam no mesmo instante doidos furiosos. Todavia – coisa singular! – nunca os homens se tinham julgado tão sábios, tão seguros da posse da verdade, tão confiantes na infalibilidade dos seus julgamentos, das suas teorias científicas, dos seus princípios morais, como pensavam estar esses infelizes. Aldeias, cidades, povos inteiros eram atacados daquela moléstia e perdiam a razão, não se compreendendo uns aos outros.
Cada um julgava saber, ele só, a inteira verdade e, contemplando os seus semelhantes, afligia-se, batia no peito, chorava e torcia as mãos. Ninguém se entendia sobre o bem e o mal, nem sabia quem condenar ou absolver. Matavam-se uns aos outros, movidos por uma cólera absurda. Reuniam-se formando grandes exércitos, mas, começada a campanha, as tropas dividiam-se bruscamente, as fileiras rompiam-se, os guerreiros lutavam entre si, assassinavam-se e devoravam-se. Nas cidades tocava-se a rebate de manhã à noite, eram todos chamados a pegar em armas. Mas, porquê, e a que propósito? Ninguém o sabia e toda a gente andava inquieta. Cada um dava a sua opinião, propunha as suas reformas, e nunca chegavam a acordo; a agricultura tinha falta de braços. Aqui e além reuniam-se grupos, assentavam um plano de acção comum, protestavam jamais se desunirem. Mas não demorava que se esquecessem do juramento feito e começassem a acusar-se mutuamente, a bater-se, a matar-se. Este quadro desolador era completado pelos incêndios e pela fome. Tudo perecia, homens e coisas. O flagelo cada vez assumia proporções mais assustadoras. No mundo inteiro só conseguiriam salvar-se alguns homens predestinados a propagar o género humano, a renovar o mundo. Esses, contudo, ninguém os vira em parte alguma, ninguém ouvira as suas palavras, nem o som das suas vozes!

Fotografia: Jorge Aguiar Oliveira.
Texto: F. M. Dostoievski.

Sem comentários: