sábado, 15 de dezembro de 2012

ONCE UPON A TIME IN THE WEST (1968)



Há um elemento político em Johnny Guitar (1954) que serviu de moldura a muitos outros westerns. Trata-se da expansão do caminho-de-ferro e das vítimas que o progresso económico arrastou, fenómenos que nunca mudam. Uma das mais nobres dimensões do western é, precisamente, descer aos infernos e trazer à superfície o que se esconde debaixo de terra, desmascarar a realidade, desnudar a sociedade e confrontar-nos, enquanto seres humanos, com os seus podres. Ora, nos subterrâneos desta bandeira do progresso temos o nascimento do crime em grande escala, relacionado com a prospecção de terrenos onde passavam as máquinas a vapor. O mercado imobiliário atingiu nesses tempos valores incalculáveis num país onde a justiça não acompanhava, definitivamente, a velocidade das locomotivas. Surgiram os grandes barões da economia, que ora negociavam a bem com os chamados pioneiros instalados onde menos convinha, ora se rodeavam de capangas para se apoderarem de terrenos onde edificariam grandes cidades.
Se bem se recordam, a chegada de Johnny Guitar ao saloon de Vienna é acompanhada por enormes explosões onde se abre caminho para a passagem da via-férrea. De resto, Vienna instalou o saloon naquele local já na perspectiva de que aí viesse a ganhar um bom dinheiro quando chegasse a locomotiva àquelas paragens. Argumento similar acompanha Once Upon a Time in the West (1968), de Sergio Leone (1929-1989). Não obstante, os elementos políticos no western são quase sempre secundarizados pela força do carácter das suas personagens. Os valores humanos vêm à tona em estado bruto, como ouro negro ou dourado que importa transformar. Um dos aspectos mais fascinantes neste género cinematográfico é a capacidade de narrar personalidades complexas e suas respectivas idiossincrasias em poucas horas, dar a ver o carácter dos homens e a construção da identidade dos indivíduos em escassos frames. Leone foi um mestre na área, não tanto na fase do chamado western-spaghetti (lá iremos) como no seu filme-síntese de 1968.
Once Upon a Time in the West é um filme com contornos que o distanciam da chamada trilogia dos dólares, repleto de evocações e homenagens. Leone coloca em acção duas estrelas do cinema norte-americano, subvertendo a imagem que as suas carreiras haviam projectado e aniquilando vários clichés em torno das boas e das más figuras construídas pelo grande ecrã. Só mesmo o impagável Henry Fonda (mercenário de nome Frank, ao serviço de um barão dos caminhos de ferro) consegue ser totalmente desprezível, o que denota, desde logo, a perversidade de Leone na desmistificação dos seus actores. A Fonda opõe-se Charles Bronson, aqui no papel de um misterioso pistoleiro sem nome que toca harmónica quando devia falar e fala quando devia tocar harmónica. O homem da harmónica é das mais inesquecíveis personagens produzidas pelo western e elevou a um nível superior, diria transcendental, um actor geralmente diminuído aos caminhos estreitos da pura acção.
Embora muitas leituras sejam possíveis, incluindo a tal leitura política que contorna o quadro geral, esta oposição Bronson/Fonda é, para mim, o grande segredo do filme de Sergio Leone. O homem da harmónica como que dá corpo a um dos mais importantes elementos, senão o elemento fundador, da cinematografia do realizador italiano: a música de Ennio Morricone. Este elemento é de tal modo importante que precede a própria filmagem, tendo Morricone composto os temas ainda antes do filme existir. A personagem de Bronson, sem nome, confunde-se na identidade com a música que o acompanha. Tudo é música neste filme, a câmara persegue a melodia, os ritmos, as paragens, o suspense, o silêncio determinado por magníficos planos fechados, tudo isso é música em estado de permanente fusão com a imagem.
Mais do que os diálogos, parcos mas eficazes, importa sublinhar uma montagem que nos obriga a olhar para a tela como um todo. A expressividade de cada um dos elementos da pintura é indissociável desta linguagem onde a música assume o papel fundador. Os planos fechados, os movimentos lentos, as sequências arrastadas, intensificam as tensões e dão-nos a ver pormenores em cada uma das personagens que passariam despercebidos de outra forma. A figura feminina do argumento, uma prostituta de Nova Orleães (Claudia Cardinale) arrastada para aquele fim do mundo com a esperança de uma vida nova, ou a ambivalência moral do picaresco fora da lei Cheyenne (Jason Robards), o perfil implacável de Frank e a aura enigmática do homem da harmónica são "caractrerizações" que, no final, apontam todas na direcção do mistério desvendado por um flashback com início no olhar de Bronson em close-up.
No fundo, o que temos aqui é uma história de vingança, a história de uma vítima que procura vingar o mal de que foi alvo num passado distante, a história de um homem que carrega dentro de si o desejo de se libertar de uma condenação imerecida. Digamos que é no terreno delineado por este desejo de vingança que toda a acção decorre, com um cinismo moral tão convincente que nos vemos cúmplices de um género de pessoas cujo maior bem é não serem tão maus quanto os piores dos seres humanos. As balas disparadas pelo homem da harmónica têm a atenuante de um passado que só nos é dado a compreender no termo da narrativa, tornando relativa toda e qualquer asserção moral sobre cada uma das personagens. Isto acontece com uma gestão dos tempos onde cada gesto vale não por si só, mas, sobretudo, pelas causas que o determinam. É cinema, não é outra coisa senão cinema.

2 comentários:

MJLF disse...

"Tudo é música neste filme, a câmara persegue a melodia, os ritmos, as paragens, o suspense, o silêncio determinado por magníficos planos fechados, tudo isso é música em estado de permanente fusão com a imagem." Este filme é mesmo bom cinema! saúde e bjs para a tribo

Ivo disse...

Antes de mais, obrigado por publicar este blog. Queria adjectivá-lo mas sinceramente faltam-me palavras.
Passando ao que me leva a comentar: ao ler os vários posts sobre westerns que têm sido publicados, compreendo finalmente a admiração e o fascínio que o meu Avô tinha por este tipo de filmes. Era eu miúdo, 6,7 anos, talvez mesmo um pouco mais tarde, e deixava-me confuso ver a mesma pessoa tão culta e sabedora (com 4ª classe, não com um curso tirado ao Domingo nem com equivalências) ficar em frente à televisão a olhar como um miúdo fascinado com algo de novo.
Memórias. Boas memórias...