Há um elemento político em Johnny Guitar (1954) que serviu
de moldura a muitos outros westerns. Trata-se da expansão do caminho-de-ferro e
das vítimas que o progresso económico arrastou, fenómenos que nunca mudam. Uma das mais nobres dimensões
do western é, precisamente, descer aos infernos e trazer à superfície o que se
esconde debaixo de terra, desmascarar a realidade, desnudar a sociedade e
confrontar-nos, enquanto seres humanos, com os seus podres. Ora, nos
subterrâneos desta bandeira do progresso temos o nascimento do crime em grande
escala, relacionado com a prospecção de terrenos onde passavam as máquinas a
vapor. O mercado imobiliário atingiu nesses tempos valores incalculáveis num
país onde a justiça não acompanhava, definitivamente, a velocidade das
locomotivas. Surgiram os grandes barões da economia, que ora negociavam a bem
com os chamados pioneiros instalados onde menos convinha, ora se rodeavam de
capangas para se apoderarem de terrenos onde edificariam grandes cidades.
Se bem se recordam, a chegada de Johnny Guitar ao saloon
de Vienna é acompanhada por enormes explosões onde se abre caminho para a
passagem da via-férrea. De resto, Vienna instalou o saloon naquele local já na
perspectiva de que aí viesse a ganhar um bom dinheiro quando chegasse a
locomotiva àquelas paragens. Argumento
similar acompanha Once Upon a Time in the West (1968), de Sergio Leone
(1929-1989). Não obstante, os elementos políticos no western são quase
sempre secundarizados pela força do carácter das suas personagens. Os valores
humanos vêm à tona em estado bruto, como ouro negro ou dourado que importa
transformar. Um dos aspectos mais fascinantes neste género cinematográfico é a capacidade de narrar personalidades complexas e suas respectivas idiossincrasias em
poucas horas, dar a ver o carácter dos homens e a construção da identidade dos indivíduos
em escassos frames. Leone foi um mestre na área, não tanto na fase do chamado
western-spaghetti (lá iremos) como no seu filme-síntese de 1968.
Once Upon a Time in the West é um filme com contornos que
o distanciam da chamada trilogia dos dólares, repleto de evocações e homenagens. Leone coloca em acção duas
estrelas do cinema norte-americano, subvertendo a imagem que as suas carreiras
haviam projectado e aniquilando vários clichés em torno das boas e das más figuras
construídas pelo grande ecrã. Só mesmo o impagável Henry Fonda (mercenário de
nome Frank, ao serviço de um barão dos caminhos de ferro) consegue ser
totalmente desprezível, o que denota, desde logo, a perversidade de Leone na
desmistificação dos seus actores. A Fonda opõe-se Charles Bronson, aqui no
papel de um misterioso pistoleiro sem nome que toca harmónica quando devia
falar e fala quando devia tocar harmónica. O homem da harmónica é das mais
inesquecíveis personagens produzidas pelo western e elevou a um nível superior,
diria transcendental, um actor geralmente diminuído aos caminhos estreitos da
pura acção.
Embora muitas leituras sejam possíveis, incluindo a tal
leitura política que contorna o quadro geral, esta oposição Bronson/Fonda é,
para mim, o grande segredo do filme de Sergio Leone. O homem da harmónica como
que dá corpo a um dos mais importantes elementos, senão o elemento fundador, da
cinematografia do realizador italiano: a música de Ennio Morricone. Este elemento
é de tal modo importante que precede a própria filmagem, tendo Morricone
composto os temas ainda antes do filme existir. A personagem de Bronson, sem
nome, confunde-se na identidade com a música que o acompanha. Tudo é música neste
filme, a câmara persegue a melodia, os ritmos, as paragens, o suspense, o silêncio
determinado por magníficos planos fechados, tudo isso é música em estado de permanente
fusão com a imagem.
Mais do que os diálogos, parcos mas eficazes, importa
sublinhar uma montagem que nos obriga a olhar para a tela como um
todo. A expressividade de cada um dos elementos da pintura é indissociável desta
linguagem onde a música assume o papel fundador. Os planos fechados, os
movimentos lentos, as sequências arrastadas, intensificam as tensões e dão-nos
a ver pormenores em cada uma das personagens que passariam despercebidos de
outra forma. A figura feminina do argumento, uma prostituta de Nova Orleães (Claudia
Cardinale) arrastada para aquele fim do mundo com a esperança de uma vida nova,
ou a ambivalência moral do picaresco fora da lei Cheyenne (Jason Robards), o
perfil implacável de Frank e a aura enigmática do homem da harmónica são
"caractrerizações" que, no final, apontam todas na direcção do mistério desvendado por
um flashback com início no olhar de Bronson em close-up.
No fundo, o que temos aqui é uma história de vingança, a história
de uma vítima que procura vingar o mal de que foi alvo num passado distante, a história
de um homem que carrega dentro de si o desejo de se libertar de uma condenação
imerecida. Digamos que é no terreno delineado por este desejo de vingança que
toda a acção decorre, com um cinismo moral tão convincente que nos vemos
cúmplices de um género de pessoas cujo maior bem é não serem tão maus quanto os
piores dos seres humanos. As balas disparadas pelo homem da harmónica têm a
atenuante de um passado que só nos é dado a compreender no termo da narrativa,
tornando relativa toda e qualquer asserção moral sobre cada uma das
personagens. Isto acontece com uma gestão dos tempos onde cada gesto vale não
por si só, mas, sobretudo, pelas causas que o determinam. É cinema, não é outra coisa senão cinema.
2 comentários:
"Tudo é música neste filme, a câmara persegue a melodia, os ritmos, as paragens, o suspense, o silêncio determinado por magníficos planos fechados, tudo isso é música em estado de permanente fusão com a imagem." Este filme é mesmo bom cinema! saúde e bjs para a tribo
Antes de mais, obrigado por publicar este blog. Queria adjectivá-lo mas sinceramente faltam-me palavras.
Passando ao que me leva a comentar: ao ler os vários posts sobre westerns que têm sido publicados, compreendo finalmente a admiração e o fascínio que o meu Avô tinha por este tipo de filmes. Era eu miúdo, 6,7 anos, talvez mesmo um pouco mais tarde, e deixava-me confuso ver a mesma pessoa tão culta e sabedora (com 4ª classe, não com um curso tirado ao Domingo nem com equivalências) ficar em frente à televisão a olhar como um miúdo fascinado com algo de novo.
Memórias. Boas memórias...
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