quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

THE MAN WHO SHOT LIBERTY VALANCE (1962)


Porque, como dizia o outro, isto anda tudo ligado, quem tiver visto Once Upon a Time in the West (1968) terá reparado que o actor negro da sequência inicial é Woody Strode, que ficou para a história do cinema como o actor negro de John Ford (1894-1973). Nessa sequência inicial do filme de Leone, passada numa estação de comboios, Strode é um dos três pistoleiros que o homem da harmónica mata. Obra repleta de envios e de citações, Once Upon a Time in the West revela, logo de início, a intenção, posteriormente confirmada, de Leone abandonar o western. O assassinato de Strode não é, pois, inocente, tem algo de emblemático no contexto geral da filmografia do realizador italiano.
Um dos westerns de Ford em que podemos ver Strode é este The Man Who Shot Liberty Valance, no papel de Pompey - encarregado do rancheiro Tom Doniphon. Ainda que se trate de um papel secundário, foi, como outros atribuídos por Ford, de uma extrema importância para a afirmação dos actores negros num universo criativo liderado por brancos. De resto, este filme de Ford tem algumas linhas de diálogo onde se releva aquele “moralismo fordiano” que, de certo modo, acabou por estigmatizar a sua obra. No entanto, The Man Who Shot Liberty Valance é tudo menos um filme moralista. Coloca o público numa arena moral cujas respostas ainda hoje se mantêm sob a forma de interrogações. E as suas personagens, filmadas sempre com a sombra a persegui-las, são mais contraditórias/artísticas do que exemplares/científicas.
O filme começa com um comboio a chegar à cidade de Shinbone. Dentro do comboio vêm dois ilustres habitantes da terra, há muito emigrados: o senador Ranson Stoddard (James Stewart) e sua mulher Hallie (Vera Miles). O que os traz de regresso? O funeral de Tom Doniphon (John Wayne). A narrativa desenrolar-se-á, então, em flashback, com Ranson Stoddard a recordar os tempos em que chegou à cidade quando ainda era um jovem advogado e como se encontrou com Tom Doniphon depois de ter sido assaltado pelo fora da lei Liberty Valance (um enérgico e ruim como as cobras Lee Marvin). Este regresso é pautado por uma nostalgia que demarca o passado do presente, aponta para as mudanças na paisagem geral e no comportamento dos cidadãos.
Agora, os homens já não andam de coldre à cintura, a cidade passou a ter igrejas e escolas, os seus habitantes adoptaram os modos civilizados de um mundo onde tudo é política e oratória. Esta contraposição permitir-nos-á entender o cerne de um problema geograficamente definido pelas linhas que separam o leste do oeste, a cidade do campo, os livros de direito das armas. Distantes um do outro, mas não tanto quanto isso, o jovem advogado Ranson Stoddard e o rancheiro Tom Doniphon têm soluções diferentes para um mesmo problema: Liberty Valance. Eles são personificações do dilema que há muito assola os americanos, confiar na lei ou nas armas a protecção de que carecem quando se sentem ameaçados. A evolução, o progresso, parece ter dado mais força aos livros de direito. Mas não será isto um grande equívoco?
Aceitamos a dúvida quando somos confrontados, em pleno século XXI, com mais um massacre numa escola norte-americana e novamente se discute nesse país o acesso fácil às armas de fogo. O toque conservador que denunciamos nos filmes de John Ford readquire, por força da história, uma pertinência atroz. O velho Oeste ainda está vivo naquela região, apesar das escolas e das igrejas, assim como estão vivos o medo e a violência no sangue da humanidade. Não sei se se trata de um problema ontológico, mas compreendo que se procure solucioná-lo por intermédio da política.
Daí que o filme de Ford, na oposição que alimenta entre armas e direito, sem que se incline para qualquer uma das soluções - pois, como veremos, toda a narrativa política do filme assenta num equívoco temperado por sentimentos bem mais íntimos como o amor a uma mulher (a menina Hallie do restaurante dirigido por um casal de emigrantes suecos!) -, resulte como uma equação intrincada e filosófica, nada silogística e muito pouco moralista. Mas The Man Who Shot Liberty Valance é também, além de tudo isto, um elogio à imprensa livre enquanto poder inalienável num mundo que se queira civilizado, justo e verdadeiro. Este elogio é especialmente paradoxal, pois o filme termina, precisamente, com a imprensa a queimar a verdade sobre a história do homem que matou Liberty Valance. Porquê? Porque no Oeste: quando a lenda se torna um facto, imprime-se a lenda.

3 comentários:

manuel a. domingos disse...

grande, grande filme

Anónimo disse...

"quando a lenda se torna um facto, imprime-se a lenda". Ao ler o trecho, lembrei-me imediatamente de um livro...
Já leste o "The Not So Wild, Wild West: Property Rights on the Frontier"?
É da autoria de dois estudiosos estadunidenses (se não me engano) que há 30 anos se debruçam sobre o que se passou no Velho Oeste.
Um trecho (traduzido livremente por Leandro Roque - http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1028):
"Quantos assassinatos você acha que ocorriam, em um ano, nessas típicas cidades do velho oeste? Pense na mais violenta cidade, a mais sangrenta, aquela típica cidade onde criadores de gado disputavam à bala a propriedade de seus terrenos e onde os cowboys marcavam de duelar ao meio-dia para resolver suas diferenças. [...] Quantas mortes em um ano? Cem? Mais?
Que tal cinco? Este foi o maior número de homicídios que qualquer cidade do velho oeste já testemunhou durante um dado ano, ao longo de toda a história da colonização. Cinco homicídios em um ano. A maioria das cidades apresentava uma média de 1,5 homicídios por ano, e nem todos eram homicídios por tiros. Você tem muito mais chances de ser assassinado em uma cidade como Baltimore hoje do que tinha em Tombstone em 1881, ano do famoso duelo no Curral O.K. (contagem de corpos: três) e o ano mais violento de toda a história daquela cidade."

DRB.

Anónimo disse...

Vale dizer que o site onde está a tradução apenas tomou o livro citado como referência. Os autores do livro nada têm a ver com o site ou os ideais dos seguidores do site.