Porque, como dizia o outro, isto anda tudo ligado, quem
tiver visto Once Upon a Time in the West (1968) terá reparado que o actor negro
da sequência inicial é Woody Strode, que ficou para a história do cinema como o
actor negro de John Ford (1894-1973). Nessa sequência inicial do filme de
Leone, passada numa estação de comboios, Strode é um dos três pistoleiros que o
homem da harmónica mata. Obra repleta de envios e de citações, Once Upon a Time
in the West revela, logo de início, a intenção, posteriormente confirmada, de
Leone abandonar o western. O assassinato de Strode não é, pois, inocente, tem algo de
emblemático no contexto geral da filmografia do realizador italiano.
Um dos westerns de Ford em que podemos ver Strode é este
The Man Who Shot Liberty Valance, no papel de Pompey - encarregado do rancheiro
Tom Doniphon. Ainda que se trate de um papel secundário, foi, como outros
atribuídos por Ford, de uma extrema importância para a afirmação dos actores
negros num universo criativo liderado por brancos. De resto, este filme de Ford
tem algumas linhas de diálogo onde se releva aquele “moralismo fordiano” que,
de certo modo, acabou por estigmatizar a sua obra. No entanto, The Man Who Shot
Liberty Valance é tudo menos um filme moralista. Coloca o público numa arena moral cujas
respostas ainda hoje se mantêm sob a forma de interrogações. E as suas personagens,
filmadas sempre com a sombra a persegui-las, são mais contraditórias/artísticas
do que exemplares/científicas.
O filme começa com um comboio a chegar à cidade de Shinbone.
Dentro do comboio vêm dois ilustres habitantes da terra, há muito emigrados: o
senador Ranson Stoddard (James Stewart) e sua mulher Hallie (Vera Miles). O que
os traz de regresso? O funeral de Tom Doniphon (John Wayne). A narrativa
desenrolar-se-á, então, em flashback, com Ranson Stoddard a recordar os tempos
em que chegou à cidade quando ainda era um jovem advogado e como se encontrou
com Tom Doniphon depois de ter sido assaltado pelo fora da lei Liberty Valance
(um enérgico e ruim como as cobras Lee Marvin). Este regresso é pautado por uma
nostalgia que demarca o passado do presente, aponta para as mudanças na
paisagem geral e no comportamento dos cidadãos.
Agora, os homens já não andam de coldre à cintura, a cidade
passou a ter igrejas e escolas, os seus habitantes adoptaram os modos
civilizados de um mundo onde tudo é política e oratória. Esta contraposição
permitir-nos-á entender o cerne de um problema geograficamente definido pelas
linhas que separam o leste do oeste, a cidade do campo, os livros de direito
das armas. Distantes um do outro, mas não tanto quanto isso, o jovem advogado
Ranson Stoddard e o rancheiro Tom Doniphon têm soluções diferentes para um
mesmo problema: Liberty Valance. Eles são personificações do dilema que há
muito assola os americanos, confiar na lei ou nas armas a protecção de que
carecem quando se sentem ameaçados. A evolução, o progresso, parece ter dado
mais força aos livros de direito. Mas não será isto um grande equívoco?
Aceitamos a dúvida quando somos confrontados, em pleno
século XXI, com mais um massacre numa escola norte-americana e novamente se
discute nesse país o acesso fácil às armas de fogo. O toque conservador que
denunciamos nos filmes de John Ford readquire, por força da história, uma
pertinência atroz. O velho Oeste ainda está vivo naquela região, apesar das
escolas e das igrejas, assim como estão vivos o medo e a violência no sangue da
humanidade. Não sei se se trata de um problema ontológico, mas compreendo que
se procure solucioná-lo por intermédio da política.
Daí que o filme de Ford, na oposição que alimenta entre
armas e direito, sem que se incline para qualquer uma das soluções - pois, como
veremos, toda a narrativa política do filme assenta num equívoco temperado por
sentimentos bem mais íntimos como o amor a uma mulher (a menina Hallie do
restaurante dirigido por um casal de emigrantes suecos!) -, resulte como uma
equação intrincada e filosófica, nada silogística e muito pouco moralista. Mas The
Man Who Shot Liberty Valance é também, além de tudo isto, um elogio à imprensa
livre enquanto poder inalienável num mundo que se queira civilizado, justo e
verdadeiro. Este elogio é especialmente paradoxal, pois o filme termina,
precisamente, com a imprensa a queimar a verdade sobre a história do homem que
matou Liberty Valance. Porquê? Porque no Oeste: quando a lenda se torna um
facto, imprime-se a lenda.
3 comentários:
grande, grande filme
"quando a lenda se torna um facto, imprime-se a lenda". Ao ler o trecho, lembrei-me imediatamente de um livro...
Já leste o "The Not So Wild, Wild West: Property Rights on the Frontier"?
É da autoria de dois estudiosos estadunidenses (se não me engano) que há 30 anos se debruçam sobre o que se passou no Velho Oeste.
Um trecho (traduzido livremente por Leandro Roque - http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1028):
"Quantos assassinatos você acha que ocorriam, em um ano, nessas típicas cidades do velho oeste? Pense na mais violenta cidade, a mais sangrenta, aquela típica cidade onde criadores de gado disputavam à bala a propriedade de seus terrenos e onde os cowboys marcavam de duelar ao meio-dia para resolver suas diferenças. [...] Quantas mortes em um ano? Cem? Mais?
Que tal cinco? Este foi o maior número de homicídios que qualquer cidade do velho oeste já testemunhou durante um dado ano, ao longo de toda a história da colonização. Cinco homicídios em um ano. A maioria das cidades apresentava uma média de 1,5 homicídios por ano, e nem todos eram homicídios por tiros. Você tem muito mais chances de ser assassinado em uma cidade como Baltimore hoje do que tinha em Tombstone em 1881, ano do famoso duelo no Curral O.K. (contagem de corpos: três) e o ano mais violento de toda a história daquela cidade."
DRB.
Vale dizer que o site onde está a tradução apenas tomou o livro citado como referência. Os autores do livro nada têm a ver com o site ou os ideais dos seguidores do site.
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