Nascido em 1946, o norueguês Erling Kittelsen publicou mais de quarenta obras desde a estreia, em 1970, com uma colectânea de poemas intitulada Ville Fugler (Wild Birds). Além de poesia, escreveu peças para teatro, romances, literatura infantil, tendo obtido alguns prémios relevantes. Do corpo total da sua obra destacam-se três sequências longas: Tiu (1982), Hun (She, 1989) e Diktet løper som en by (The poem runs like a city, 2000). Selected Poems (Aschehoug, 2012),edição bilingue com versões inglesas de John Irons, colige alguns poemas, organizados cronologicamente, de todos os seus livros. Trata-se de uma poesia que reflecte um trabalho intenso de arqueologia literária, por vezes consubstanciado em diálogos complexos com obras clássicas nórdicas e não só. A concisão do poema, apesar das sequências mais extensas, é uma característica geral que se manifesta logo nos textos iniciais: «Pássaro humano / lançamos-te / do penhasco // sabes voar?» (Wild Birds, 1970, p. 9) Esta vertente epigramática, frequentemente acompanhada de interrogações, imagens misteriosas, anáforas, coloca a poesia de Kittelsen num território enriquecido pelos domínios da mitologia e da antropologia religiosa. No entanto, estes poemas parecem mais afectados pela dúvida do que por uma eventual realização hierofântica, mesmo quando num livro intitulado Abiriel’s Lion (1988), que remete para um épico de Henrik Wergeland (1808-1845) sobre a criação do universo, podemos ler versos talvez recriáveis assim: «Um raio de verdade toma-me e aquece-me / brilha – vibra através de mim. / Será disto que se pretendem livrar? / Um vislumbre que do coração emerge / com força, onda que em câmara-lenta pauta o voo / noutra direcção ciciando como a cauda estirada de um dragão / se mostra ela mesma: não tanto para ceder, não para ficar lá / A sombra que elucida a luz» (p. 33) O carácter culto destes textos gera algumas dificuldades que não têm que ver apenas com a inacessibilidade das fontes, mas também com uma distanciação da realidade imediata em favor de uma relação com lugares mitológicos penetrados pelo sujeito poético. Nem sempre assim é, porém. A diversidade manifesta-se, por exemplo, nos poemas do livro in (i, 1995), onde descobrimos esta poética em toada algo irónica: «Para saltar sobre troncos num rio desgarrado / o realista alinha-se com a realidade / o romântico segue desenfreado e desvia-se do caminho / o pós-moderno encontra o mundo já / desconstruído e borrifa-se / o neo-realista vê muito claramente num salto / as considerações lucrativas do fornecedor de madeira / o surrealista arrasta um francês / e acaba na cascata, o periferista / também acredita que vai andar no meio da corrente / o futurista parte em sapatos de tamanho único, perde / Estamos sentados nuns pedregulhos a acompanhar / o ballet do rio, uma crescente fina camada de celulose / com um doentio cheiro ácido revela sonhos / em actividade, políticas em bloco, poluição, uma luta / para violetas, ligações rodoviárias, premonições / Desgarrado? Quem chamou desgarrado ao rio? / Está a fluir com muita calma» (p. 57) Lugar de refúgio e de exílio, o poema é, no universo de Erling Kittelsen, um reflexo onde a realidade apenas se sugere, não se representa. O poema recebe-a de um modo elíptico e indeterminado, uma espécie de revelador acaso da linguagem. Do poeta espera-se apenas uma certa predisposição:
Vou sentar-me aqui até que alguém chegue
Não sairei daqui
Não vou esconder-me
Aqui me sento, aqui fico, aqui caminho
voo aqui, sem saber onde pousar minhas asas
ou onde estão a ser cortadas
Não vou verificar ao voltar da esquina
Não vou procurar nos meus antepassados
Não vou simpatizar com descendentes
Eu não tenho assim tantos amigos aqui
Mas se tiver problemas, alguém há-de aparecer
tenho muitos amigos algures
mas se as coisas pioram, ninguém aparece
eles também não vão compreender o vazio
Olhar apenas as sombras enquanto passam
embora em chamas, o coração calmo
algo no ar; não argumentar
algo em mim está firme, espaço à volta
devo ficar aqui para receber tudo
Do livro Mottakeren (The Receiver, 2005)
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