Num livro intitulado Made in America, o escritor Bill
Bryson refere que, «por volta de 1920, os westerns representavam quase um terço
das produções de Hollywood. Mas o seu verdadeiro auge deu-se nos anos
cinquenta, na televisão. Em 1959, o ano-zénite das séries de cowboys, o
telespectador americano podia escolher entre vinte e oito séries que passavam
na televisão – a uma média de quatro por noite». Facilmente se entende este
sucesso no contexto norte-americano, ávido de heróis nacionais e semideuses tão
realistas quão pragmáticos. A mitologização do Oeste representada pelo western respondeu,
deste modo, a um desejo das populações. Daí que a figura do cowboy, quase
sempre descontextualizada da sua realidade histórica, seja, neste domínio, tão
determinante como a do fora-da-lei. O mesmo se passa com o índio, o peregrino, os
colonos, o marshal, o sheriff, o mineiro ou as cidades fantasma e os “lugarejos
poeirentos”. São personagens e elementos de uma paisagem onde vamos reencontrar
os conflitos essenciais da humanidade, nesse estado primitivo que procuramos constantemente
como quem busca a raiz do que somos. Não nos admiremos, pois, que a velha Europa
tenha adoptado este fascínio pelas recriações da Oregon Fever. Ao olhar assim
para o Novo Mundo, o cinéfilo europeu regressa ao berço mitológico da
civilização. E sabemos o quão fundamentais foram os mitos na construção da
humanidade, chamem-se eles Prometeu, Robin Hood ou Jesse James. A vantagem
deste é o de ter sido real, atingindo o Monte Olimpo na mitologia dos foras-da-lei do velho Oeste mais pela morte que teve do que pela vida que levou. A vida
foi a de um homem que encontrou nos assaltos a bancos e comboios uma forma de
perpetuar a guerrilha dos confederados após a Guerra Civil. Assim ganhou fama e
se transformou numa lenda local, ascendendo posteriormente ao panteão dos mitos nacionais (e
internacionais) muito por culpa de Robert Ford, o elemento do gangue de James
que o assassinou pelas costas. É em Robert Ford que Samuel Fuller (1912-1997)
centra as atenções no seu filme de estreia, o western I Shot Jesse James
(1949). O filme de Fuller é uma boa ferramenta para separarmos o trigo do joio.
Longe de mitologizar, como que desconstrói os próprios mitos. Num só rosto, a coragem
mistura-se com a cobardia, a firmeza com o pânico, a fidelidade com a
traição. Nada preocupado com a figura mitológica de Jesse James (Reed Hadley),
Fuller recria na personagem de Bob Ford (John Ireland) uma espécie de Judas à
procura de redenção. Muito antes de Brokeback Mountain, este filme chega mesmo
a sugerir uma relação entre dois homens que transcende a mera cumplicidade. Desde
a cena inicial com James a tratar de uma ferida de Ford, ao amor que este
confessa por James na hora derradeira, percebemos que havia entre os dois uma
relação complexa e nada convencional. Ford assassina James para poder levar uma
vida normal com Cynthy (Barbara Britton), mas logo descobre o quão impossível
essa normalidade se afigura. Não apenas porque Cynthy não o ama tanto quanto o
teme, chegando mesmo a repeli-lo ao saber da sua condição de traidor, mas
porque o fantasma de James o persegue revestido de um arrependimento que
termina na confissão de um amor traído. A certa altura, Bob Ford escuta num
saloon uma canção que o menospreza na exacta medida em que glorifica Jesse
James. A postura de Ford, já depois de ter revelado a sua identidade ao amedrontado,
trémulo e gaguejante bardo, que se vê obrigado a cantar a canção até ao fim, é
a de um homem perseguido não só pela sua consciência, não só por um fantasma,
mas sobretudo pela percepção do mal que fez a si próprio ao assassinar pelas
costas o homem que amava para poder ficar com a mulher que lhe poderia oferecer
uma vida normal. Recordemos a cena:
O terror experimentado por este homem é o de quem acaba
sozinho, sem passado nem futuro, no pântano do remorso. Ao entregar Jesus nas
mãos dos romanos, Judas condenou-se a si próprio. Uma leitura mais solene da denúncia
dirá que se sacrificou, mas não estamos certos de que Judas o tenha
compreendido antes de se pendurar pelo pescoço. Ao matar Jesse James, Robert
Ford condenou-se a si próprio à máxima das penas. Ficou isolado no interior de
uma cela horrível, a de não ter ninguém que o amasse como ele, afinal, amava
o homem que matou.
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