Camarada Van Zeller, antes de mais permita-me felicitá-lo
pela sagacidade com que olha o mundo actual. É óbvio que o estudo do FMI sobre
a reforma do Estado, encomenda de Gaspar e companhia, chegou à comunicação
social pela mão do próprio Governo. A táctica não é nova. Chamam-lhe técnica do
vendedor de tapetes, e consiste em propor o mais elevado dos preços para se chegar
a um acordo razoável. Pratica-se muito nos souks árabes e no governo de Coelho,
Relvas e Gaspar, os três reis magos que seguem caminho montados num camelo de
apelido Portas. Sucede que neste caso não há razoabilidade possível, o preço a
pagar é já o preço da catástrofe em que estamos metidos. Na semana em que se
anunciou o pior dos cenários, os temas que entusiasmaram as hostes foram uma
mala da Chanel e o abate de um cão. Ora, eu gosto muito de estudos. Venham eles
do FMI ou de um instituto californiano qualquer. Gosto deles porque nos
permitem brincar com os números como se por detrás dos números não existissem
vidas, pessoas, famílias, gente interessada numa mala da Chanel e no abate de
um cão. Por isso me interrogo se dos 100 mil milhões de planetas descobertos
pelos cientistas do Caltech não haverá pelo menos um, por ínfimo que seja, onde
eu possa montar a tenda para me ver livre desta gente toda. Não desejo mal a
ninguém, como vossa excelência perceberá, mas também não o quero para mim. E neste
momento, perdoe-me o tom confessional, sinto-me uma autêntica aberração numa
república das putas, para utilizar a certeira terminologia do João Magueijo.
Saberão quem é João Magueijo os milhares de humilhados e ofendidos que passaram
a semana a discutir o putativo abate do cão Zico? Será, para essa gente, tão
familiar o apelido Magueijo como o nome Zico? Duvido. Por isso lhe sugiro,
camarada Van Zeller, a atenta leitura do artigo que o físico português publicou
no Público da passada sexta-feira. A República das Putas é o título, recorda a célebre
Dona Branca e aposta que, fosse hoje, a banqueira do povo mereceria um bónus de
milhões e teria uma posição de topo na Wall Street. Ora, não é precisamente
isto que constatamos todos os dias? Perguntem ao Jardim Gonçalves. Cito
Magueijo, interesse o discurso a quem deseja malas Chanel ou não: «Os jogos
financeiros contemporâneos são tão abstractos e auto-referenciais que trocando
a coisa por miúdos mais não são do que comprar e vender dinheiro, como fazia a
Dona Branca. Por razões que nunca entendi, muitas das galinhas dos ovos de
ouro, em Londres e Nova Iorque, são físicos teóricos e matemáticos falhados,
ex-colegas meus em alguns casos. Temos tido acesas discussões, mas numa coisa
concordamos: a teoria do caos e o Lema de Ito que se lixe, aquilo é
simplesmente jogar na lotaria. Como é que trocar acções por computador ao
microssegundo, como se tem vindo a propor, pode corresponder a alguma operação
económica? Aquilo é verdadeiramente a Dona Branca: uma pescadinha de rabo na
boca financeira, “financiar o financiamento das finanças financiadas”, num jogo
bem enterrado no umbigo da Wall Steet e da City de Londres, um totoloto mundial
mas com um belo seguro contra perdas: quando se ganha, ganham eles; quando se
perde, pagamos todos, em cascata». Matéria demasiado abstracta, quiçá, para
quem se coloca ao nível de um cão. Discutamos, pois, tourada. É assunto por
todos facilmente dominado. Que importa que uma instituição financeira como o
FMI venha propor uma redução de 15% nas pensões de reforma ou um corte em 3 a
7% nos vencimentos dos funcionários públicos ou a redução de 10 a 20% dos
actuais trabalhadores do Estado ou o despedimento de 50 mil trabalhadores na
área da educação, etc, etc, etc? Nada disto tem qualquer importância no país
das Pêpas e dos Zicos. Bem pode o Camilo Lourenço pedir que o FMI se mantenha
em Portugal mais uns quatro ou cinco anos, a austeridade não fere os
portugueses, não os atinge, não os indigna tanto quanto os direitos do Zico. Os
eleitores não se queixam da tortura. Podem ser massacrados, roubados,
vigarizados, lapidados que o seu comportamento será como o de um homem a quem
cortam um braço e ele fica feliz por lhe restar outro, cortam-lhe o outro e ele
agradece a Deus ter as duas pernas, cortam-lhe uma das pernas e ele sente-se
grato pela que ainda tem, cortam-lhe a perna que resta e ele suspira de alívio
por ainda ter cabeça, cortam-lhe a cabeça e ele pergunta-se onde raio a meteu. São
altíssimos os juros que andamos a pagar pelos empréstimos contraídos, mas mais
grave é esta amorfia social que já não pode ser considerada meramente
indiferente. Sendo vítima, não deixa também de ser cúmplice dos seus
criminosos. Vejam bem o paradoxo em que estamos metidos.
Ao alto: Samuel Fuller e... Zico?
2 comentários:
mas com um vendedor manhoso de tapetes ou cuecas da china nós ainda podemos discutir o preço. aqui pagas e não bufas. até ao dia, digo e anseio...
É um facto.
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