segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

LÁ ONDE O RIO TE LEVA

Em 1842, Melville desertou de um baleeiro e aventurou-se numa ilha dos mares do sul. Aí sobreviveu a uma comunidade de canibais (a acreditar no relato do seu primeiro romance). Por mares semelhantes velejou Robert Louis Stevenson. Mais recentemente, o Prémio Nobel J. M. G. Le Clézio vai-nos mantendo informados sobre a paisagem ameríndia. Kenneth White deu-nos boleia até ao Labrador, em busca de vestígios indígenas para sempre perdidos. Similar desolação pudemos sentir entre os aborígenes da Austrália, pela mão de Bruce Chatwin. Em todos estes ousados viajantes pressagiamos uma necessidade de exílio civilizacional, uma urgência de ir ao encontro do diverso e de aí procurar, quem sabe, a raiz de si próprio. Nada comparável, porém, com o que Tobias Schneebaum (1922-2005) relata em Lá onde o rio te leva (Antígona, 1990). Nova-iorquino oriundo de uma família de emigrantes polacos judeus, Schneebaum foi para o Peru, em 1955, com uma bolsa da Fundação Fullbright. Antes, já tinha vivido no México entre uma tribo local. No Peru, foi mais longe. Arriscou-se na direcção de uma missão instalada no meio da selva. A experiência da caminhada foi, nas suas palavras, uma experiência de desintegração, a experiência de quem se afasta de um mundo facilmente definível, previsível, determinável, para entrar num universo ditado pelo acaso: «Em tudo à minha volta havia um sentido de irrealidade, assim como em relação a mim mesmo. Sentia-me como se fosse outra pessoa, de modo nenhum eu próprio, mas, apesar de o mundo e a minha caminhada através dele ser sempre indefinível e incerta, nunca tinha a aparência de um sonho. Era como se eu tivesse entrado noutra dimensão e tanto eu como as coisas à volta nos encontrássemos desfocados» (p. 16). Esta outra dimensão é, também, a dimensão onde o presente como que inverte a sua marcha natural, volta costas ao futuro e regressa a um passado primitivo onde a paisagem e as pessoas adquirem contornos apenas imagináveis. É como se agora, aos 35 anos, este pintor com inclinações antropológicas passasse a ser objecto de si próprio, pois é a si mesmo que se retrata e é sobre si mesmo que recaem todas as observações. O padre que Schneebaum encontra na missão alimenta um contraste pungente entre a normalidade do chamado mundo civilizado e a selva, ele próprio parece senil e louco na sua solitária relação com Deus. A primeira grande questão que Lá onde o rio te leva coloca é, precisamente, a da fronteira entre o normal/bem e o aberrante/mal, algo que serve os intentos do autor em desmistificar a homossexualidade descrevendo-a como uma prática natural entre os selvagens, ou seja, uma prática tão humana quão primitivas podem ser todas as coisas humanas. Mas por detrás desta questão talvez se esconda o peso de um tormento, a consciência de uma culpa imposta pelo mundo de que Schneebaum faz parte sem nele se sentir completo. Estranho paradoxo este, de ser necessária a experiência da desintegração, proporcionada pelo afastamento civilizacional, tornando-se Schneebaum tão “índio” quanto os índios com quem chega a praticar o canibalismo, para que o vazio se encha na alegria da solidão: «No México, tudo era novo para mim. Onde quer que eu estivesse não havia nunca outra ideia no meu espírito, a não ser que as pessoas estavam perto. Eu sabia que se continuasse a andar mais três ou quatro horas, iria dar a uma aldeia, a uma cabana, a uma plantação, a qualquer posto avançado. Aqui era diferente, a chegada à missão, o andar dia após dia sem sinal de outra gente que além de mim povoasse a Terra. Era esta a minha alegria» (p. 44). Sensação de liberdade repetida vezes sem conta, mesmo quando na companhia dos seus companheiros primitivos, perdido no espaço das florestas mais selvagens, este homem se encontra, finalmente, com a sua identidade. O relato apaixonado que Tobias Schneebaum faz dos Akaramas, adoptando-os e fazendo-se por eles adoptar, é mais o relato de quem procura conhecer-se a si próprio do que o relato de quem se arroga no conhecimento do outro. Talvez, neste sentido, o antigo pai da filosofia estivesse certo, não nos sendo possível conhecer o outro senão naquilo que ele nos revela de nós próprios. Assim nós, ao lermos este livro, percebemos o muito que ainda temos que caminhar para chegar a esse lugar onde um dia poderemos dizer, sem que nenhum vazio nos atormente, este sou eu, um ser, num lugar.

1 comentário:

sonia disse...

Isso é que é coragem e desapego. É preciso ser um pouco desmiolado para se conhecer o próprio miolo!!!