Foras da lei como Jesse James (1847-1882) e Billy the Kid
(1859-1881) inspiraram a criação de inúmeras personagens de ficção nos filmes
sobre o wild west. Sem que tal seja evidente, podemos supor que Josey Wales foi
uma delas. Esta personagem levada à tela por Clint Eastwood em 1976, num filme
que suportou o título português de O Rebelde do Kansas, também tem no rosto as
cicatrizes da guerra civil. Não anda a assaltar comboios nem bancos, mas junta-se
a um grupo de rebeldes do Mississipi para fazer a vida negra às tropas da
União. Nenhum objectivo político parece movê-lo, é certo. Em nenhum momento da
acção podemos julgar que a luta de Josey Wales é a da Confederação. O filme é
ambíguo nesses termos, não parecendo tão interessado em explorar tais questões
como parece apostado em retratar os efeitos da guerra numa sociedade
desmembrada e a necessidade de vingança de um homem em particular depois de assistir
ao homicídio da sua família sem nada poder fazer. Como noutras personagens de
Eastwood, há neste fora da lei um peculiar sentido de justiça alimentado pela
dor das vítimas. Wales é um humilde agricultor quando vê a sua casa ser
incendiada, a mulher ser violada e assassinada, o filho pequeno morto por uma
milícia dos chamados red legs (jayhawkers do Kansas associados à causa
unionista). A perda da família é, pois, a razão que o leva a juntar-se aos guerrilheiros
da Confederação até estes, enfraquecidos, se renderem ao exército pela mão do
líder Fletcher (John Vernon). Todos excepto Josey Wales, que prosseguirá
a sua saga numa fuga paradoxal. Repare-se que a saga deste homem é a de
quem perde sucessivamente aqueles a quem se junta. Há, por isso, um
tom irónico neste filme que o torna bastante especial. À medida que Josey Wales
cavalga, com a cabeça a prémio, na direcção das Indian Nations, adopta,
involuntariamente, uma nova família. Primeiro, um velho chefe Cherokee
atraiçoado pelo civismo do homem branco. Depois, uma jovem Navajo explorada por
um comerciante corrupto. Por fim, duas peregrinas do Kansas resgatadas de um saque
perpetrado por um bando de comancheros. Todos estes elementos têm em si a marca
das vítimas, foram alvo de injustiças, traições, actos desumanos. A nova
família de Josey Wales vem, ao mesmo tempo, sarar feridas abertas e alimentar
essas mesmas feridas. É esta paradoxalidade ontológica que caracteriza o
rebelde do Kansas, um homem traído pelas consequências da política que apenas encontra
paz na comunhão desinteressada entre os seres humanos. A cena do encontro com o
chefe Comanche Ten Bears (existiu, de facto, um chefe Ten Bears) é, por isso,
fulcral para a compreensão da narrativa e, na minha opinião, uma sequência que
merece ser revista vezes sem conta:
O que aproxima Josey Wales de Ten Bears é aquilo que os
afasta de outros indivíduos, ou seja, o espírito guerreiro autónomo e justo. Daí
que, aos olhos do poder, um seja fora da lei e o outro selvagem. Defendem para
si o que julgam melhor e o que julgam melhor para si próprios não está em
sintonia com as pretensões segregacionistas do governo. Eloquente contradição:
ao mesmo tempo que a América acabava de travar, entre si, uma luta sangrenta com
pretensões integracionistas e humanitários, estes dois homens, excluídos,
despojados, escorraçados, perseguidos pelo “mundo civilizado”, fazem um pacto
de sangue com o propósito simples de poderem partilhar os mesmos espaço e tempo,
respeitando-se mutuamente na diferença, que é sempre menor do que se julga
quando tentamos olhar para nós próprios com olhos que não sejam apenas aqueles
que julgamos nossos.
Sem comentários:
Enviar um comentário