Em 2010, os irmãos Joel & Ethan Coen fizeram um
remake do western que valeu a John Wayne o Oscar por melhor interpretação
masculina em papel principal. Agora exibido nas terras de Zé do Telhado com o
título Indomável, o True Grit dos irmãos Coen partilha apenas com o filme de
Henry Hathaway a mesma base narrativa, ou seja, o romance de Charles Portis. Quanto
ao resto, são filmes substancialmente diferentes. Uma diferença perceptível
logo à partida tem que ver com a atmosfera que serve de cenário à acção. A Primavera
de Hathaway dá lugar ao Inverno dos irmãos Coen, à neve, ao frio, aos vapores e
à respiração ofegante dos animais. Os Coen dispensam grande parte dos elementos
emotivos que tornam a primeira versão algo sentimentalista, concentrando-se na
personalidade determinada e firme da jovem Mattie Ross (Hailee Steinfeld).
Deste modo, o filme parece desenvolver-se muito mais a
partir dessa personagem que é a da jovem com um objectivo definido: vingar a
morte do seu pai. A sua relação com o implacável Marshal Rooster Cogburn (Jeff
Bridges) mantém-se, mas este deixa de ser uma figura paternalista para passar a
ser, juntamente com o ranger LaBoeuf (Matt Damon), objecto de sedução no
interior de uma personalidade adolescente desbravando caminho na direcção da
maturidade. Mattie encontra-se, assim, entre dois pesos e duas medidas de
avaliação da realidade. A sua determinação apenas vacila quando confrontada com
a necessidade de optar. De um lado, o pragmático e informal Rooster Cogburn. A
sua coragem é inegável, tanto quanto a determinação de Mattie em capturar o
assassino de seu pai. Do outro lado, o formal e orgulhoso LaBoeuf, talvez mais
metódico e previdente.
Não se opondo um ao outro, Cogburn e LaBoeuf actuam de
modo diverso. Se na versão de 1969 aparecem sempre juntos, intervindo em
equipa, agora são separados, seguem trilhos diferentes, não divergentes,
reencontram-se, separam-se novamente, distanciam-se, reaproximam-se. Este duelo
sem balas mantido entre ambos, esta espécie de jogo que tem na sua origem
personalidades distintas, oferece a Mattie o que há de essencial na construção
de uma personalidade: o choque de valores. Cogburn e La Boeuf acabam por se
constituir como o pai ideal para Mattie depois de o pai real haver sido
assassinado. Não é acidental o discurso derradeiro de um dos condenados na cena
de enforcamento, dirigindo-se aos filhos e à importância das boas companhias. É
uma subtileza humorística que se compreende no desenrolar da história.
Mas esta história aceita também uma outra perspectiva. Se
é verdade que a interacção entre Cogburn e LaBoeuf amadurece Mattie, também não
deixa de ser verdade que é a resolução desta jovem que transporta aqueles
homens para uma outra dimensão, talvez heróica, onde as hesitações humanas que
quase os levam a desistir do objectivo inicial acabam por ser superadas pela
necessidade de intervir. Lembremo-nos de que LaBoeuf morre no filme de Hathaway.
Os Coen mantêm-no vivo porque isso se torna indiferente. Não há aqui nenhuma
necessidade de exaltar o papel de Cogburn. Há, antes, uma vontade clara de nos
fazer perceber que é Mattie quem está no centro das atenções. E esta
recolocação da narrativa sobre os ombros de uma personagem obriga-nos a uma
pergunta essencial, afinal onde reside essa valentia, essa firmeza, essa
coragem que dá título ao filme na expressão de true grit?
Joana d’Arc do velho Oeste, sem a componente mística e
muito mais realista do que a própria realidade, esta Mattie Ross não pode ser
apenas ficção. É uma energia que advém do desejo, personalização daquilo a que
Nietzsche em tempos chamou vontade de poder e alguns interpretaram, maldosamente,
como “vã glória de mandar”. Ela é uma força porventura incomensurável e indeterminável
cientificamente, que não se resume apenas à coragem desmedida de Cogburn nem à
bravura deontológica de LaBoeuf. É uma força íntima, inerente ao ser, que
desabrochará subjectivamente em cada um de nós sempre que formos confrontados
com o que não pode deixar de ser feito, sob pena de, não sendo feito, roubar-nos
a nossa própria identidade.
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