segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

VOLTA D'MAR

Mulher Inclinada com Cântaro, de Jaime Rocha (1949), é o quinto volume publicado pela Volta d’Mar, projecto editorial sediado na Nazaré. Luís Paulo Meireles, o editor, confidenciou-nos que a sua intenção é angariar fundos para comprar um bilhete de ida, sem volta, para fora do país. Anunciadas que foram novas edições durante a sessão de apresentação da quinta vaga, tememos que o objectivo esteja longe de ser concretizado. Para bem dos leitores, para mal do editor. Entretanto, já apresentada a obra e cerrada a sala, reuniram-se ali perto, à volta de um tacho guarnecido com arroz de tamboril, alguns marinheiros de terras bravas presenteados com uma surpreendente nota de rodapé: o sexto volume da Volta d’Mar. Tivemos, deste modo, um dois em um numa noite generosa, sendo que o dois, distribuído em privado, é este luz submersa no farol d’ Alexandria, extensivamente subtitulado três cavaleiros moçárabes à procura do bacalhau de Alpedriz, dos trilhos de Fuas no pinhal do Sítio, dos terrenos herdados na Galiza, do bairro alto à feira da ladra e outras desventuras:
Escrito a três mãos, são os cavaleiros moçárabes nazarenos com os nomes de José Henrique Delgado, Luís Paulo Meireles e M. Parissy. Paródia unida por uma cúmplice aventura, luz submersa no farol d’Alexandria reproduz três poemas longos com evocações diversas e um tom satírico muito apropriado aos carnavais da actualidade. Delgado abre as hostilidades com dois versos seminais: «Ai se eu fosse daltónico / Em vez de Portugal… veria a Nova Zelândia!» (p. 4) Segue-se uma anáfora que nos levará do presente até à tomada de Santarém aos mouros, com as nações ocupadas pelo FMI em pano de fundo e muita vontade de pregar sermões aos peixes. Já o poema de Luís Paulo Meireles fotografa alucinadas peregrinações nocturnas, da Nazaré a Lisboa, com a memória a servir a reposição da verdade e um tom algo nostálgico que assume na descrição do passado a irrelevância de significados que não sejam os da própria experiência. Pois mais do que especular, pensar, reflectir, importa actuar, agir, experimentar: «entram umas atrás da outras / a rosa a ti isaura a júlia do vai à loja /o cão da mangueira atrás da velha / (xta cão, á migas nã me larga olhem quisto) / o zé fulineiro sai da taberna / de cigarro na boca / e barril na barriga / copos e copos virados / diz que foi não sei quem / ou eram estrangeiras / e lentamente começa /o elevador a subir / lá em cima o sítio / espera por nós» (p. 11). O Sítio é o da Nazaré, de onde se avistam melhor os naufrágios que m. parissy retrata num poema a transbordar de referências íntimas e históricas, com locais, pessoas, dias, noites, momentos e «línguas que não são deste mar» (p. 17).
Também ele natural da Nazaré, Jaime Rocha evoca na sua mulher com cântaro um imaginário que traz subentendidas as vivências locais. Uma praia vazia, uma mulher e um cão que «encosta-se-lhe / às pernas como se pertencesse aos seus / vestidos» (p. 8), convocam memórias de angústias e padecimentos especialmente marcantes a quem faça do mar campo onde se cultiva a sobrevivência. Esta relação próxima com a vida dos pescadores foi buscar a Raul Brandão uma justíssima epígrafe, pois ela é, também, uma relação próxima com a morte. A mulher amanha o peixe, despeja as tripas no mar, é assaltada pelas gaivotas, protege-se das marés vivas, lembra um naufrágio e os corpos que nunca voltaram do mar, esses ausentes/presentes nunca regressados, cujos corpos são memória, cujos rostos são lembrança, sepultados, quem sabe, nas tripas desses peixes agora amanhados. Náufraga da esperança, a mulher inclinada com cântaro transporta no choro contido uma melancolia de incertezas. Quer o corpo do náufrago para poder chorá-lo, para que esse choro a liberte libertando-se:

14.

Quando o náufrago aparece
na rebentação, a fonte seca e todos
os cântaros racham com o sopro da água.

Há um grito no cimento molhado
e as ruas fecham-se como se assistissem
a um eclipse. Alguns telhados caem para
dentro das casas e as janelas explodem
com o vento.
É uma dor antiga que chega_________
que vem ocupar o lugar que lhe pertence.
É o corpo desfeito do homem que
tenta reconstruir-se na memória da vila,
que vem para se intrometer no luto,
como um vírus.

Nas dezoito partes que constituem a sequência, encontramos, deste modo, um poema que se lê como uma elegia aos homens do mar (e, claro está, às suas mulheres), com um fio narrativo marcada pela familiaridade da experiência retratada. Essa experiência é a do luto, ritual da vida que traz a morte equilibrada sobre a cabeça como um cântaro.

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