domingo, 3 de fevereiro de 2013

OS FOLGAZÕES



Originalmente publicado em 1882, na Cornhill Magazine, The Merry Men (Os Folgazões, Assírio & Alvim, Janeiro de 2011) é uma short story de Robert Louis Stevenson (1850-1894) que reflecte, ao mesmo tempo e na mesma proporção, a inclinação do autor para ambientes enigmáticos e um tremendo respeito pelas forças da natureza. Tal como Stevenson, o narrador desta história estudou na Universidade de Edimburgo. Regressa à ilha de Aros (ficção baseada na Ilha de Erraid, que serviu de palco a várias representações stevensonianas), propriedade do tio Gordon, um homem baixo, amargo, bilioso, rude, frio e carrancudo, que ali vive na companhia da filha Mary Ellen e de um criado chamado Rorie. Charlie, o nosso herói, pretende conquistar o coração de Mary Ellen, mas leva também consigo a cobiça de outros tesouros. Aros é uma ilha acerca da qual muitas histórias se contam, histórias sobre criaturas miseráveis, sereias e naufrágios, como a do navio Espirito Santo, da Invencível Armada, supostamente ali afundado com um tesouro e Grandes de Espanha e soldados ferozes. Esta dupla motivação para um regresso a local tão solitário, cuja característica mais distinta são as poderosas ondas a que chamam Folgazões, gera no leitor uma espectativa à qual Stevenson está longe de querer responder. Na realidade, enquanto caminha pelos promontórios, carreiros de gado e pelas escarpas de Aros, o jovem Charlie deixa-se apanhar pela ratoeira daquela parte do arquipélago. Em cinco breves capítulos, a narrativa resvala para uma reflexão mística que nada tem que ver com o ambiente superficial das histórias de aventuras. Assim como o nosso narrador escorrega nas algas e se descobre entre náufragos, com Mary Ellen no seu coração e o desafortunado tio tomado pela loucura da superstição, também nós, leitores, somos impelidos a nos descobrir entre mortos e demónios. A superstição e o humor sombrio que perseguem o tio de Charlie contrastam, é certo, com a frieza deste na análise das situações, mas esta frieza não lhe evita o assombro quando se depara com a face última da vida nos destroços de um navio. Daí que a sua missão de encontrar o tesouro do Espirito Santo lhe pareça sacrílega, porque corresponde a algo parecido com violar as ossadas dos mortos num cemitério. É o tio quem o adverte: «o mar é como a terra mas muito mais assustador. Se há gente na terra, há gente no mar... talvez morta, mas apesar disso gente; e quanto a demónios, não há demónios como os do mar» (pp. 43-44). Quando mergulha nas águas da Sandag Bay, onde julga repousarem os restos mortais da Invencível Armada, Charlie mergulha num túmulo e, com esse gesto, desperta os mortos do seu sono. Stevenson acompanha o momento com estranhas alterações climatéricas, metamorfoses súbitas na paisagem, preces, a chegada de uma tempestade. Esta tempestade, descrita com um realismo surpreendente, invade o mundo inteiro com as suas sombras, atira sobre a terra uma chuva densa, alimenta os Folgazões com náufragos desprevenidos. No fundo, o que aqui temos é um quadro da fraqueza dos homens perante a força indómita da Natureza. Julgo ser esse o interesse principal de Stevenson, para quem os mistérios da mente humana, povoada por crenças e mitos e superstições, se revelam de um modo claro quando fundamentados pelo temor inspirado nas forças naturais. Afectado por pensamentos sombrios, como por pensamentos sombrios vivia afectado o seu tio há muito estancado naquele deserto de ilha, Charlie apenas encontra um pouco de luz em Mary, a quem pretende oferecer melhores mundos do que os proporcionados pela ilha. Sinónimo de isolamento, Aros pode também ser uma representação simbólica dos medos que nos oprimem, das crenças que nos cativam, desses constrangimentos sociais que impedem um homem de se afirmar plenamente condenando-o a uma desgraçada solidão. Os Folgazões serão o poder que tudo arrasta, são Deus e o Tempo, formas diversas de representar na cabeça dos homens uma mesma realidade, uma realidade que tanto nos apavora como seduz, tornando-se, tantas vezes, ininteligível obsessão. O fim deste conto, com um carácter alegórico indisfarçável, faz sair do mar um homem negro como quem arranca à terra um demónio. A ilha de Aros não é o Inferno, mas talvez seja o limbo. Um lugar onde, afinal, os vivos parecem fantasmas e os mortos ganham vida no coração agourento dos homens. Um lugar rodeado de mar. Esse mar que é obra do Diabo, capaz de reduzir armadas invencíveis a meras rolhas de cortiça. Esse mar que é um manto de mistério, inspirador, através do desconhecimento que dele temos e do respeito que nos provoca, de estranhas sensações que tornam dúbia toda a realidade e incerta qualquer percepção.

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