segunda-feira, 18 de março de 2013

AS RECORDAÇÕES DE EDNA




Sam Savage (n. 1940) não é tão conhecido como outros escritores norte-americanos contemporâneos, algo que se aceita se tivermos em conta a atitude reservada do autor. Aqui e acolá, muito a espaços, vamos encontrando uma referência, uma pequena entrevista, fragmentos de conversas, passagens efémeras por encontros sem grande aparato. Começou a escrever tarde, depois de uma experiência frustrada no mundo académico e uma vida inteira a sobreviver dos mais diversificados ofícios. Só em 2005 se reaproximou das letras, com a publicação de um livro intitulado The Criminal Life of Effie O. O reconhecimento internacional surgiu no ano seguinte com o magnífico Firmin: Adventures of a Metropolitan Lowlife. Firmin chegou a Portugal em 2009, com a chancela da Planeta, a mesma editora que no ano seguinte publicou O Grito da Preguiça (The Cry of the Sloth: The mostly tragic story of Andrew Whittaker, being his collected, final, and absolutely Complete Works, 2009) e agora este As Recordações de Edna (no original, simplesmente Glass). Já este ano, Sam Savage editou The Way of the Dog. São, deste modo, três os livros de Savage publicados entre nós.
O acolhimento do autor em Portugal tem sido modesto, facto que apenas reforça a nossa convicção de que se trata de um autor a todos os títulos excepcional. Caso contrário, já o público ou a crítica ou os dois em uníssono tinham feito a festa, lançado os foguetes e apanhado as canas. Sobre Firmin escrevi aqui, tendo posteriormente dedicado um post a O Grito da Preguiça. Como sou preguiçoso, lanço-me agora à tarefa menor de escrever meia dúzia de linhas sobre um livro que nos inspira, pelo menos, um milhão de pensamentos. Desta feita, Savage respiga para personagem central do seu tratado uma mulher idosa, viúva de um escritor mediano, a quem é solicitado um prefácio curto para a reedição do único livro com algum sucesso do falecido marido. Edna, a viúva, hesita, acabando por propor não um prefácio curto, mas um livro autónomo: «que, embora contivesse muita coisa sobre Clarence, não seria apenas acerca dele, mas também acerca da minha vida antes e depois, porque ninguém podia aspirar a conhecer Clarence sem isso» (p. 22).
Se há pouco chamei tratado a este livro, como poderia chamar aos outros do mesmo autor, é porque estas obras analisam, de facto, a natureza humana, desmontando-a e voltando a montá-la com a configuração de uma manta de retalhos. À semelhança do que sucedia em O Grito da Preguiça, As Recordações de Edna é um aglomerado de pensamentos dispersos, reflexões, revisitações, páginas soltas, memórias, onde a personagem central vai revelando os aspectos mais singulares da sua existência sem que neles esvazie a sua própria referencialidade. Cansada, saturada, sempre em perseguição do silêncio, declaradamente infeliz e solitária - «Nem sequer é solidão, é pior do que solidão, é uma mente cheia de coisas» (p. 182) -, a velha Edna revisita situações, viagens, lugares, traça um perfil impiedoso do falecido marido enquanto vasculha a mente, vê-se ao espelho, escreve ao acaso, deixa-se interromper pelos afazeres domésticos e comezinhos, transporta-os para dentro do texto e enfrenta-nos com parágrafos absolutamente reveladores:
«Há uma incongruência. Talvez os acontecimentos sejam demasiado grandes para as palavras. A guerra é demasiado grande para elas, as palavras são como insectos minúsculos que batem contra a vidraça (a «janela da mente») ao tentar sair e lá fora o mundo é grande e tumultuoso. Ou talvez seja ao contrário: as palavras é que são demasiado grandes; algumas palavras são demasiado grandes. A palavra «amor» é demasiado grande. Se calhar, a palavra «Clarence» também é demasiado grande. Eu achava que o sofrimento quotidiano silencioso, incoerente, da vida comum era demasiado grande. Agora acho que as palavras são demasiado grandes para ele. Não há palavras triviais o suficiente para dizer como ele é terrível» (p. 163).
Procurando equilibrar-se entre o tédio da vida doméstica, com as plantas e os animais da vizinha Potts para tratar, e o lado explosivo das recordações, é no gesto mecânico de bater as palavras à máquina, é nesse gesto obsoleto, que Edna resiste ao declínio total. Revendo a vida com esse gesto antiquado, ela parte o vido à moldura e revela-se sem subterfúgios nem abrigos. Fica exposta e desnudada, a sua autenticidade denuncia uma erosão que está tanto no mundo como em si própria, porque, afinal, a paisagem que ela nos descreve não pode ser entendida sem que ela se nos revele, como ninguém pode aspirar a conhecer Clarence sem conhecer a vida de Edna antes e depois de Clarence. Há uma unidade na manta de retalhos que é, no fundo, a unidade possível de vislumbrar entre todos os elementos que compõem uma paisagem, uma unidade que apenas se descobre quando partimos o vidro à moldura. Talvez seja injusto terminar com uma alusão a Winesburg, Ohio, mencionado por Edna mais do que uma vez no decorrer da costura. Mas é esse livro de Sherwood Anderson a referência que melhor nos pode servir aqui de comparação.

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