Ao olharmos para o percurso de Afonso Cruz (Figueira da Foz, 1971), não podemos deixar de nos espantar com as múltiplas facetas da sua actividade. Ilustrador, músico, realizador, escritor, Afonso Cruz tem amealhado prémios que reconhecem, com toda a justiça, a qualidade do seu trabalho. Como escritor, estreou-se em 2008 com o romance A Carne de Deus (Bertrand). Publicou ainda os romances A Boneca de Kokoschka (2010), O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (2011) e Jesus Cristo Bebia Cerveja (2012). Não obstante, se excluirmos a produção infanto-juvenil, quer como autor dos textos, quer como ilustrador, é no conto que o talento para as palavras de Afonso Cruz melhor se revela. Neste domínio, são de leitura obrigatória os três volumes publicados da Enciclopédia da Estória Universal e, mais recentemente, O Livro do Ano (Alfaguara, Fevereiro de 2013).
Não será descabido considerar este objecto lindíssimo uma obra onde aparecem sintetizadas, com extraordinário equilíbrio, várias facetas do autor. Trata-se de um livro assaltado por uma espécie de pensamento mágico onde a ilustração fala quando as palavras esvanecem e o silêncio que as palavras respeitam, num admirável exercício de contenção verbal, como que ilustra o universo encantador da personagem que lhes oferece forma. Organizado segundo as estações, O Livro do Ano reproduz o diário imaginário de uma menina que olha o mundo de um modo muito especial. Indiferente a géneros, idades, classificações, a obra seduz-nos, desde logo, pela sua beleza gráfica, mas também pela capacidade que denota de perspectivar o mundo de um modo poético cada vez mais ausente das nossas vidas.
A páginas tantas, a Primavera que nos fala - não será por acaso que o diário começa no dia 21 de Março – refere um Instituto das Pessoas Normais, colocando-se no lado de fora desse suposto Instituto e protegendo-se da normalidade. Esta menina, a quem o irmão chama maluca, canta com gestos quando dança em silêncio, rega as plantas no Outono com a chuva guardada da Primavera, fica à janela a ver a noite deitar os pássaros nos ninhos, traz um jardim enorme na cabeça e inventa dias para Fevereiro. No fundo, ela poetiza o mundo quando o interpreta, quando sobre ele se debruça reflectindo os absurdos com que se ruminam calendários. A imaginação induzida pelas ilustrações não é exterior à vida, antes da vida se levanta como as palavras organizadas num diário.
Há aqui uma reinvenção da escrita que extravasa as fronteiras da novela gráfica, da micronarrativa, do livro infanto-juvenil, com uma precisão que, afinal, é a da poesia quando logra inscrever-se nas regiões traiçoeiras da ternura. Sim, este livro é, antes de qualquer outra coisa, uma expressão da ternura. Assim que me recorde, só um livro me terá provocado anteriormente semelhantes sensações: A Alegria de Gostar, de Jairo Aníbal Niño, por cá publicado em versão áudio (Boca). Mas O Livro do Ano tem algo mais, uma inocência perdida que Afonso Cruz manipula com apurada capacidade efabulatória. Deixo de exemplo três entradas deste diário onde o silêncio revela sempre tanto quanto as palavras desenhadas no branco da página ou as figuras escritas na escuridão da linguagem:
5 de Agosto
Decidi criar gritos dentro de mim. Abro a boca e engulo todos os sons que consigo.
Depois, não os deixo sair.
6 de Agosto
Tinha gritos fechados há tanto tempo no meu peito que, quando os soltei, saíram corcundas.
12 de Agosto
Fui até às montanhas junto ao mar. Lá em cima, abri a boca para soltar um grito que tinha ficado esquecido.
Não quis sair. Tive de o expulsar aos berros.
Os gritos, quando passam muito tempo presos, ficam uma porcaria. Como os vegetais no frigorífico.
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