Hipopótamos em Delagoa Bay (Abysmo, Março de 2013) foi escrito entre Agosto de 2010 e Fevereiro de 2011, no âmbito de uma Bolsa Criar Lusofonia 2010. O autor pôde deslocar-se a Moçambique, recolhendo in loco os cheiros, as histórias, os falares, organizados num pertinente glossário final, que povoam as 268 páginas do romance. Mas mais importante, pôde tomar o pulso a um país com o qual os portugueses mantêm uma relação histórica complexa. Entre as fotografias iniciais, de Jorge Aguiar Oliveira, e a citação derradeira de José Mário Branco, Carlos Alberto Machado (n. 1954) desbrava-nos o caminho da presença portuguesa em Moçambique desde os tempos da conquista à pós-independência. As fotografias de Jorge Aguiar Oliveira reproduzem uma paisagem que o tom da prosa intensifica, mostram-nos ruínas, destroços, resquícios de uma presença humana e animal entretanto transformada em lixo. Há nelas um reflexo que o título da obra induz, clarificado nas páginas finais quando dois protagonistas desta história dialogam:
Ainda há hipopótamos na baía? –
não, não, fugiram –
como nós, por «entre os torpes, fumegantes destroços do império» -
Entre aspas, versos de Rui Knopfli (n. 1932 – m. 1997), poeta nascido em Moçambique mas com um inegável sentimento de expatriação. Ao longo do livro, são várias as evocações de personalidades históricas, «figuras, factos e entidades», posteriormente elencadas, numa perspectiva que a citação final pedida de empréstimo a José Mário Branco sintetiza: «Houve aqui alguém que se enganou». Carlos Alberto Machado organiza o romance em partes relativamente breves, encimadas por títulos entre parêntesis retos onde vamos antevendo o percurso do apelido Quaresma nas terras de Moçambique. O tom é bastante crítico e, de certo modo, elegíaco. Logo no início, a cidade de «Maputo que já foi Lourenço Marques» é-nos introduzida através do «cheiro violento expulso de um contentor de lixo esventrado por “famélicos da terra”» (p. 15). Mas o que torna o retrato verdadeiramente nauseabundo não são as imagens dos destroços, não é a degradação e a ruína que enformam a paisagem, nem tanto a degeneração de um nome, Quaresma, desde a chegada dos portugueses a África até ao abandono, depois da independência. O que torna o retrato nauseabundo é a percepção da hipocrisia e do logro que a palavra Revolução encerra, com as suas principais chagas, o medo e o ódio, desveladas pela guerra, pela exploração, pela maldade. Os heróis e os mártires que a toponímia procura imortalizar são tratados com distância pelo autor, o qual vagueia pelas ruas buscando nas sombras a razão de ser de um nome: «Uma pátria é um caixote cheio de nomes. Vermes que nunca morrem. Alimentam-se uns aos outros» (p. 29). Uma pátria também é um caixote cheio de expatriados, um lugar onde a chacina pontua a história e a riqueza de uns poucos se constrói sobre a miséria dos povos. Daí que haja no conceito de Revolução uma ambivalência irresolúvel, dois rostos numa mesma face, por assim dizer, para um nome que se farta de desenhar cicatrizes na esperança. A família com raízes alentejanas que o romance acompanha em terras de Moçambique, numa escrita onde se misturam géneros mas não se perde o fio à meada, permite-nos quebrar a moldura ao retrato e deixar a paisagem expandir-se, alcançando, desse modo, uma panorâmica ampliada, porventura menos sectária, sobre os deves e haveres da relação entre os dois povos que, afinal, se revelam um só como uma só é toda a humanidade. Temos ali gente que partiu de Portugal para o ultramar, outra que nasceu já em território africano e nunca pisou a terra do Portugal europeu, outra que se viu obrigada, por contingências diversas, a emigrar de cá para lá, de lá para cá, gente parida e crescida numa duplicidade identitária sem solução. O desenraizamento é a consequência última que a Revolução não resolve, um desenraizamento íntimo e profundo que pouco terá que ver com o desenho artificial das fronteiras num mapa, mas tudo tem que ver com as fronteiras delineadas na consciência dos homens. O desencanto que ressoa em Hipopótamos em Delagoa Bay é lúcido, é o desencanto dos desenganados, das vítimas do jogo político e do abandono a que são votados os povos, tratados como lixo pelo poder que arquitecta as ruínas e as quedas dos impérios. Melhor fora que continuássemos a poder ver hipopótamos na baía, sem nome nem ansiedade, sem medo nem feridas por sarar. Isso sim, seria verdadeiramente revolucionário.
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