sábado, 4 de maio de 2013

LIVRO DA LUZ


A relação entre as artes plásticas e a poesia é frequente, tendo alcançado pontos de encontro estimulantes no domínio da chamada poesia experimental. António Poppe (n. 1968) vem das artes plásticas, embora o seu trabalho revele um interesse multidisciplinar que logra assimilar diversos processos expressivos no corpo de uma mesma obra. É um poeta experimental no sentido em que toda a poesia resulta de uma experiência, mas seria redutor tentar circunscrevê-lo aos ecos de uma corrente mais linear do que se possa supor. Com um livro de poesia publicado há 13 anos – Torre de Juan Abad (Assírio & Alvim) -, regressou à publicação com este Livro da Luz (Documenta, Dezembro de 2012). Alvo de uma edição rigorosa, Livro da Luz é, em si mesmo, uma obra de arte. A reprodução fac-similada, em mais de 150 páginas, do terreno original onde desabrocharam os poemas do livro, encanta-nos e sugere-nos um olhar expansivo sobre o que temos em mãos. A escrita de António Poppe não resulta de uma fusão, como facilmente seríamos tentados a pensar, entre materiais plásticos e sonoros, entre a imagem e a palavra, pelo menos não tanto quanto cresce como um corpo único onde diferentes camadas se sobrepõem. Neste sentido, o poeta coloca-se no lugar demiúrgico do artífice que serve de veículo entre o Criador e o criado. Aos observarmos estas colagens, geralmente evocativas de ambientes multiculturais e primitivos, verificamos que elas estabelecem uma relação germinativa com a palavra. Percebemos as fontes, o imaginário absorvido, assimilado, o encontro inesperado do diverso, como dizia Llansol, o momento fecundador de um ser que crescerá como um corpo onde a carne de sobrepõe ao osso e a pele se sobrepõe à carne. A página apresenta-se, deste modo, como um fragmento da Terra revelador da origem, pois a partir desse fragmento conseguimos aceder ao gene fecundador do ser. Folheando serenamente estas páginas, como que absorvemos um ritmo que, afinal, é o elemento essencial desta poesia. O ritmo é o do coração, um ritmo primordial que faz tudo rebentar da vibração cósmica. Daí a recorrência à imagem da corda, como a outras igualmente simbólicas, onde o mundo se representa não em acordo ou desacordo com um ideal filosófico, político, religioso, mas antes sob a forma de uma celebração da vida e dos seus ciclos. Há um aspecto curioso no título do livro que não podemos deixar de notar. Luz é não apenas o substantivo cuja etimologia remete para clarividência, revelação, criação, mas também o nome da filha do poeta (uma das duas pessoas a quem o livro é dedicado, sendo a outra o pai do autor). Ao chegarmos aos poemas aqui reproduzidos na sua forma mais convencional – três cantos e doze canções – deparamo-nos com um círculo, símbolo universal da passagem do tempo, dos ciclos da vida, representação do mundo e das etapas de aperfeiçoamento interior. São poemas que mantêm uma relação estreita com esta noção de circularidade, evocando constantemente, através do uso de palavras como ovo, semente, espiga, matriz ou do verbo florescer, o momento da criação e o desenvolvimento do gerado numa comunicação que tudo liga a tudo.  De resto, o canto três revela um procedimento criativo que, mais adiante, no poema presente à nascença, pode ser resumido no verso «a espontaneidade mágica das crianças». Este procedimento criativo como que reflecte o processo das colagens, abrindo-se a voz do poeta a outras vozes que na sua se tornam presentes. O próprio faz questão de nomeá-las no final do livro, esclarecendo, na nota explicativa sobre o CD que acompanha a edição, que «a espontaneidade convoca as fontes em contacto do próximo ao próprio – as inseparáveis vozes de volta». Este movimento circular, lá está, aproxima a fonte daquele que nela bebe, como o absoluto que habita o ovo no canto um, o mar que também nada no canto dois ou a ave que inventa o voo no poema kora solo ascende levi. Ao dizer os seus poemas, António Poppe improvisa sobre eles, deixa-se assaltar pelo acaso, mas não perde o domínio da voz. A versão fixada das palavras talvez possa contradizer esse riso espontâneo da criação que os materiais visuais também convocam, mas é possível que sem ela o espontâneo não pudesse afirmar-se. É, por assim dizê-lo, a contraluz que justifica a luz, num jogo de opostos onde nada se opõe, tudo se reúne.

1 comentário:

Anónimo disse...

Deixo-lhe aqui um elogio a si que encontrei...merecedor

http://navegantesaomar.blogspot.pt/2013/05/antologia-falhada.html


Abraço