Camarada Van Zeller, hoje é um dia triste. Um rapaz
morreu. Foi esfaqueado até à morte por causa de um fio de ouro. Há dias, no
mesmo local, um outro foi espancado quase até à morte por causa de uns óculos
de sol. Quem mora nas imediações diz que é frequente a pancadaria, as pedradas,
as ameaças. Fica tudo junto a uma escola, onde os alunos se refugiam munidos de
facas. A gente sabe que rixas entre alunos sempre existiram, a gente sabe. Mas
hoje nada do que a gente sabe nos conforta. Antes pelo contrário. A gente até
sabe que se não soubéssemos nada seríamos mais felizes. Por isso imaginamos uma
mochila às costas e uma longa caminhada na direcção do interior abandonado, onde
só os milhafres nos avistam. Imaginamos uma tenda de pedra, os frutos que a
terra dá, sem redes, sem cabos, apenas a luz do fogo e o calor da madeira a
arder. Talvez isolados deste mundo onde uns se matam por causa de óculos de
sol, outros são aplaudidos por causa de lugares comuns, outros se entretêm com faits
divers, outros se distraem com os mergulhos do José Castelo Branco, outros se
isolam na casa, outros alimentam as emoções com as histórias da Fernanda
Serrano e do Giane e do Vujicik, outros olham para o tempo e lamentam o clima
alterado enquanto ligam o motor do carro, outros simplesmente passeiam sonhos e
ilusões no Facebook, procurando conforto para os dias, amigos virtuais,
buscando o consolo dos gostos e das mensagens positivas, exibindo o melhor
perfil na esperança de um elogio, com o ego de pantanas e a solidão em alta, talvez
isolados deste mundo, dizia, consigamos reaprender a respirar. Porque, neste
momento, sentimo-nos sufocados. Assistimos a um teatro repetitivo e entediante,
já visto, estudado, sabido, o teatro que o Vittorio de Sica tão bem encenou no seu
Ladrões de Bicicletas. É o teatro dos pobres que se revoltam contra os
desenrascados e dos miseráveis que odeiam os pobres e dos indigentes que
invejam os miseráveis, enquanto a indiferença, o comodismo, a letargia e o
alheamento de quem tem neurónios e podia mexer-se no sentido de um mundo melhor
engrossa, com a sua estúpida cumplicidade, as contas bancárias dos
exploradores. Talvez na esperança de um reconhecimento, de uma promoção, no
limite de uma cunha, pelo bom comportamento demonstrado, talvez na esperança de
que o respeitinho lhes traga proveito, as maiores vítimas desta tragédia
deslocam-se para a plateia e assistem sentados ao desmoronar do cenário. Não se
sentindo a raiva e o ódio que a injustiça justificava, somos levados a pensar
que talvez não estejam assim tão mal os portugueses. Se calhar até estão bem,
se calhar estão confortáveis. Enquanto pingar na conta o subsídio, poderão
comer sardinhas, dividi-las por três e pagar a prestação do MEO. Veremos como
será quando deixar de pingar na conta o subsídio. Ou então não veremos. Com sorte
estaremos já na aldeia abandonada do interior, e aí nos queixaremos das lutas
entre formigas por uma migalha de pão. Mas vêm-nos aos olhos as filhas. Que
futuro para elas? O futuro delas. Será legítimo arrastá-las para o nosso
desespero? Será correcto amarrá-las à nossa saturação? Que futuro para as filhas?
Que sonhos? Que esperança? Nós que estudámos, que lemos, que nos cultivámos,
nós que andámos com os ombros carregados de ideias e fizemos as loucuras que a
vida nos merece, nós que ainda hoje pedimos um pouco mais de nada que torne
grato o andarmos por aqui, queremos o quê para as nossas filhas? Eis as
respostas às nossas dúvidas: O FMI prepara-se para reconhecer que cometeu erros
grosseiros na ajuda à Grécia. O índice de suicídio na Grécia subiu 40% desde o
início da crise. O Ricardo Salgado diz que os portugueses preferem o subsídio
de desemprego. O Primeiro-ministro sugere aos portugueses que emigrem. O
Ricardo Salgado ganha 548 mil euros por ano. A Carris ganhou 15 milhões
cortando nos salários e aumentando bilhetes. A Carris perdeu 17 milhões com os
swaps. Os portugueses não sabem o que são swaps. Não consta que a administração
da Carris tenha sido demitida e julgada por gestão danosa. O Governo quer que
passe a ser publicado na página de Internet da Inspecção-Geral de Finanças os
nomes dos beneficiários de vários apoios públicos. O Governo não quer acabar
com o sigilo bancário e divulgar os nomes dos portugueses que beneficiam de
contas offshore. O banco BPN representará um encargo líquido de 3405 milhões de
euros para os contribuintes portugueses. Os
investigadores do caso CTT suspeitam que na venda de um edifício dos Correios
em Coimbra foi entregue aos ex-administradores Carlos Horta e Costa e Manuel
Baptista um milhão de euros, que terá passado pelo BPN rumo a paraísos fiscais.
CTT encerram 60 estações em apenas cinco meses. Não o maçarei mais. O
rol de crimes sem julgamento e de vigaristas à solta, de criminosos promovidos
e bem pagos é infindo. Ninguém tem mão nisto. E sabe o camarada Van Zeller
melhor do que eu que a culpa de tudo isto, porque há sempre um bode sobre quem
a culpa deve recair, é da Raquel Varela e dos pretos que se esfaqueiam por causa
de um par de óculos de sol. Quem não tem culpa alguma são os portugueses, que
só anseiam por um dia de sol sob o qual possam assar as suas sardinhas.
5 comentários:
caro henrique (permita-me tratá-lo assim, talvez este meio dispense os circunlóquios habituais), não fosse o assunto tão triste e tão deprimente, e eu dar-lhe-ia os parabéns por um sarcasmo tão delicioso.
um abraço,
vasco
olá vasco. é, de facto, deprimente.
dá vontade de sacudir as pessoas para que abram os olhos. mas sinto que não vale a ena. ainda acabarei como Hipatia.
Olá, há algum tempo que sigo este blog mas é a primeira vez que comento. Faço-o pq este texto é representativo daquilo que ainda me mantém na blogosfera: bem escrito, bem estruturado e com um conteúdo extraordinário.
Bom fds.
CSD, vale sempre a pena...
Catsone, bom fds também para si.
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