Pode parecer contraditório chamar para uma lista de
primeira safra mais um western secundário. Cometi anteriormente o crime com um
filme onde me referi a Rambo. Ora, Billy Two Hats (1974) foi realizado por Ted
Kotcheff (n. 1931) – a quem devemos First Blood (1982), o primeiro da saga que
imortalizou Sylvester Stallone. Neste
caso, estamos longe de um exercício onde a acção parece ser o fim último da
narrativa. Chato’s Land não é um filme de diálogos nem de deslumbramentos
morais. Antes pelo contrário, é um filme onde o ritmo se sobrepõe a todas as
outras componentes. Já Billy Two Hats tem uma dimensão exageradamente sentimental
que nos distrai, a espaços, dos antagonismos que as personagens instigam.
Gregory Peck é Arch Deans, um velho fora da lei em fuga
na companhia de um jovem mestiço. Foram cúmplices no assalto a um banco. Perseguidos
pelo Sheriff Henry Gifford (Jack Warden), acabam separados depois do mestiço
ser capturado. Arch fica com o dinheiro e consegue escapar, mas regressa para
salvar Billy Two Hats da forca. Gifford não compreende nem aceita este gesto.
Como pode um fora da lei, a salvo dos tribunais e com o lucro de um crime nos
bolsos, voltar atrás para salvar um mestiço? O racismo do Sheriff Gifford,
sublinhado em múltiplas cenas, não é o mais importante. De resto, estamos num
cenário pintado pela degenerescência moral dos intervenientes. Os índios que
aparecem já não são índios, são o resquício de uma cultura perdida no vício do
álcool. Os búfalos que ocupavam a pradaria, movimentando-a no horizonte como um
mar negro, desapareceram. Billy não sabe sequer o que é um búfalo. E os brancos
ali instalados já só têm memória do que perderam. Deus mandou-os dominar
todos os animais à face da terra e eles obedeceram. São o rosto de um mundo
novo onde a pureza, a inocência e até a ingenuidade deixaram de fazer sentido.
A paisagem que Kotcheff nos propõe, na linha do primeiro
Rambo, é a de um certo peso moral, a consciência de se fazer parte de uma
civilização erguida sobre débeis alicerces, perdida num labirinto de
contradições que a tornam alvo fácil de críticas e ódios. Era assim em 1974
como o é ainda hoje. Repare-se que o filme se concentra na relação de amizade
entre Arch e Billy Two Hats, reservando para este um protagonismo que está
longe de ser imaculado. O mestiço é o resultado de um cruzamento entre modos de
vida supostamente antagónicos. Na cabeça do Sheriff Henry Gifford é isso que
eles são, modos de vida antagónicos e inconciliáveis. Mas o amigo de longa data
que lhe dá guarida vive com uma índia e entre os brancos negoceiam-se mulheres,
fabricam-se casamentos e relações como quem produz sabonetes. Há muito do
antigo Oeste no Novo Mundo das tecnologias baratas.
O que me atrai neste filme não é, pois, a sua
dimensão exageradamente sentimental (a última cena, com Arch Deans já morto, a
ser sepultado nos troncos de uma árvore seca, chega a ser patética), mas sim a
capacidade que Ted Kotcheff revela de com uma história simples fazer uma
espécie de exame de consciência do chamado mundo civilizado. Assistimos à
caminhada de Billy para o futuro, na companhia da jovem que um marido violento deixou
para sempre tartamuda, e lembramo-nos do rosto furibundo do Sheriff Gifford,
deveras parecido com o de Marinho Pinho num recente Prós & Contras. Aquele
rosto é o de um mundo desequilibrado, desesperado nas suas certezas, sem espaço
para a diferença nem simpatia pela alteridade. É um mundo sem búfalos que a
ganância, a avidez e a usura mataram. É a antecipação do mundo mesquinho em que
vivemos, um mundo de explorados agradecidos, de canalhas promovidos e de gente
ordinariamente satisfeita com a vulgaridade dos dias.
Sem comentários:
Enviar um comentário