quinta-feira, 25 de julho de 2013

PULP


Com tradução competente de Vasco Gato, Pulp (Setembro de 2012) chegou ao mercado português pela Alfaguara. É difícil determinar as condições em que o derradeiro romance de Charles Bukowski (1920-1994) foi escrito, sendo certo que apenas postumamente viu a luz do dia. Figura de culto, Bukowski serviu-se diversas vezes do alter-ego Henry Chinaski para dar testemunho das suas aventuras e desventuras. Estilo cru, com uma escrita aparentemente ligada à vida de um modo imediato, sem subterfúgios nem dramatizações da identidade, o autor de Ham on Rye legou-nos retratos cruéis e ásperos, de um realismo sujo, onde as excrescências da sociedade norte-americana aparecem despidas de preconceitos. Há uma violência nas frases curtas, nos diálogos breves e agressivos, no ritmo acelerado, no desapego à paisagem que os textos de Bukowski exibem despudoradamente. E essa imagem de marca impô-lo ao leitores, por vezes, pelas piores das razões. Tornou-se, paradoxalmente, num estereótipo entediante. Quem leia Charles Bukowski apenas pela lente de um folclore maldito, onde cabem vagabundos e putas, bêbedos e trafulhas, drogados, os excluídos e desamparados, passa ao lado de uma outra dimensão que a sua escrita dissimula, a dimensão existencial de um ser incapaz de se adaptar às rotinas quotidianas que determinam a vida da maioria. É um autor onde a solidão adquire o peso da pedra e a resistência do ferro, a solidão de quem é incapaz de se adaptar à vulgaridade doméstica, encontrando pontos de fuga no jogo, na porrada, no sexo, no álcool, na escrita. Pulp não é um romance tipicamente bukowskiano, apesar do tom rude que marca a paisagem. Neste romance há máscaras sob as quais fervilha uma verdade inconfessável. Narrativa alucinada de um detective a braços com casos extravagantes como o da Morte que procura Céline ou o de um agente funerário que se diz perseguido por uma extraterrestre, Pulp acaba por resultar tanto numa paródia ao universo cinematográfico da ficção norte-americana como numa alegoria sobre a condição existencial do próprio Bukowski enquanto autor. É um romance que reproduz as alucinações do escritor, os seus medos, as suas fobias, as suas frustrações, um romance de auto-análise em fase terminal que passa por puro entretenimento. Se calhar é mesmo puro entretenimento, embora eu sinta dificuldade em reduzir a tal um parágrafo como este:


Levantei-me e fui à casa de banho. Odiava olhar-me naquele espelho mais foi o que fiz. E vi a depressão e a derrota. Papos descaídos e escuros por baixo os olhos. Pequenos olhos cobardes, os olhos de um roedor encurralado por um gato. A minha carne estava com aspecto de não se dar ao trabalho. Parecia odiar fazer parte de mim. As sobrancelhas pendiam, tortas, pareciam dementes, dementes pelos das sobrancelhas. Horrível. Estava com um aspecto repugnante. E nem sequer estava prestes a defecar. Estava todo entupido. Fui até à sanita para mijar. Fiz pontaria mas o mijo acabou por sair-me de lado e salpicou o chão. Tentei corrigir a mira e mijei no aro da sanita que me tinha esquecido de levantar. Rasguei um bocado de papel higiénico e enxuguei. Limpei o aro. Atirei o papel para o caixote e puxei o autoclismo. Aproximei-me da janela, espreitei e vi um gato a cagar no telhado do lado. Depois virei-me, peguei na escova de dentes, apertei a bisnaga. Saiu demasiado, tombando penosamente na escova e caindo no lavatório. Espetei o dedo lá dentro, colei uma parte na escova e comecei a escovar. Dentes. Que raio de coisas. Temos de comer. E comemos e voltamos a comer. Somos todos repugnantes, condenados às nossas pequenas e sórdidas tarefas. Comer e peidar e coçar e sorrir e festejar feriados.

 
Charles Bukowski, in Pulp, trad. Vasco Gato, Alfaguarda, Setembro de 2012, pp. 103-104.

2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Gosto mesmo é do teu texto ainda mais do que do do Bukowvsky.

hmbf disse...

:-) agradecido