segunda-feira, 2 de setembro de 2013

NEBLINA


Saturado da actualidade e completamente inapto para lhe ser indiferente, refugio-me pela neblina. Meto a mochila às costas, uma garrafa de água dentro e ponho-me a caminhar sozinho. Enquanto caminho, penso no bem que me faz ouvir os meus próprios passos. É como adormecer sem ouvir as batidas do coração. Tão raro, tão raro. Detesto caminhar em grupo. As pessoas distraem-me do que julgo ser fundamental, têm uma tendência para a exuberância que me inibe e, ultimamente, torna-se claro que raramente conseguem partilhar espaços comuns em silêncio. Como na minha vida o silêncio se mantém ao nível do maná, prefiro lançar-me aos carreiros em solidão. Com ou sem objectivo demarcado, em busca de um lugar que possa considerar meu por nele me sentir integrado. Há lugares que exercem sobre nós um fascínio mítico. Ou porque já os visitámos e guardamos deles as melhores recordações ou porque nunca os visitámos fisicamente mas a eles nos sentimos ligados por uma espécie de elo inexorável. Se assim for, talvez seja preferível nunca chegar a visitar esses lugares. São como aquelas pessoas que admiramos tanto que tememos conhecê-las, correndo o risco de acabarmos decepcionados. Penso nisto e recordo-me de uma cena de um filme erótico que adquiriu no meu reportório pessoal de cenas em filmes eróticos um lugar cativo. Recordar-se-ão de Nine ½ weeks, um filme sofrível com Kim Basinger e Mickey Rourke a enrolarem-se de nine ½ maneiras diferentes. Pois bem, no meio de tanto erotismo a cena que trago mais viva na memória é a de um velho pintor a apreciar nas suas próprias mãos um peixe que acabara de pescar. O pintor vive refugiado numa casa isolada, junto a um lago, rodeado de árvores e na companhia da natureza. Não podendo imitar-lhe o modus vivendi, vou satisfazendo as minhas necessidades de isolamento revisitando velhos refúgios. A Quebrada de São Romeu é um deles. Esconde-se por detrás de um dos braços de terra que abraçam a baía de São Martinho do Porto. Protege-me da neblina que ali trai com frequência agitadas tardes de canícula, cumprindo os requisitos de um breve exílio com esmero e distinção. Nunca li W. H. Hudson, mas sinto uma certa afinidade quando Bruce Chatwin e Paul Theroux se lhe referem nestes termos: «Vazio, desolação, suspensão do intelecto: eram estas as coisas que Hudson recomendava quando estava em Londres, infeliz, e recordava a terra das coisas perdidas. O que é a Patagónia de Hudson? É o contrário de uma pensão em Londres». Ainda não descobri a minha Patagónia, mas gosto sempre de regressar à Quebrada de São Romeu para aí me reencontrar com o que perdi de mim próprio. Hoje, lá chegado, sentei-me nas pedras a ler um livro de poemas do moçambicano Eduardo White. Talvez influenciado pela leitura, certamente atingido pela paisagem, escrevi isto:

 

Não desesperes perante a farsa,
o vazio, a desolação.
Distancia-te apenas.

Constatada a insuficiência,
algo mais para lá de tudo
o que possas ter para dar
há-de ainda ficar aquém do desejo.

Uma vaga encolhe-se
no murmúrio da espuma,
és a vela vergada pelo vento;
através de ti uma barca
voga para portos seguros,
terras de coisas perdidas.

Se agora verificas a corrosão
do casco, e no meio da tempestade
começa a meter água o bote,
paciência. Calar, silenciar, fingir,

é tudo quanto nos sobra
para nos protegermos do amor.

4 comentários:

editora licorne disse...

O licorne mais do que compreende - também pratica a caminhada solitária. A caminhada de grupo mais parece um bando de excursionistas barulhentos.

hmbf disse...

é a chamada caminhada anti-social :-)

Marina Tadeu disse...

Prezado rapagão, aqui vão uns ditados tradicionais da Patagónia recolhidos pelo Theroux nos tempos em que usava um saco de papel enfiado pela cara abaixo para ir ao pub:

Estoicismo é a farsa da fatalidade. Distanciamento, mais uma paisagem. Quem mete água tira um peixe. Isolamento é a ginástica da gema. Coisas perdidas, na reciclagem achadas. Quem usa armaduras de espuma ama mais branco. Mais vale vergado que quebrado. A corrosão é a linguagem dos portos.

Creio que foi uma das suas filhas que disse tudo o que, a propósito do seu (magnífico e de passar a língua pelos lábios) texto, havia a dizer: O SILÊNCIO É UM BARULHO FECHADO.

Tudo isto para o chamar ao dever: isole-se mas não se cale.

hmbf disse...

agradecido