Saturado
da actualidade e completamente inapto para lhe ser indiferente, refugio-me pela
neblina. Meto a mochila às costas, uma garrafa de água dentro e
ponho-me a caminhar sozinho. Enquanto caminho, penso no bem que me faz ouvir os
meus próprios passos. É como adormecer sem ouvir as batidas do coração. Tão
raro, tão raro. Detesto caminhar em grupo. As pessoas distraem-me do que julgo
ser fundamental, têm uma tendência para a exuberância que me inibe e,
ultimamente, torna-se claro que raramente conseguem partilhar espaços comuns
em silêncio. Como na minha vida o silêncio se mantém ao nível do maná, prefiro
lançar-me aos carreiros em solidão. Com ou sem objectivo demarcado, em busca de
um lugar que possa considerar meu por nele me sentir integrado. Há lugares que
exercem sobre nós um fascínio mítico. Ou porque já os visitámos e guardamos
deles as melhores recordações ou porque nunca os visitámos fisicamente mas a
eles nos sentimos ligados por uma espécie de elo inexorável. Se assim for,
talvez seja preferível nunca chegar a visitar esses lugares. São como aquelas
pessoas que admiramos tanto que tememos conhecê-las, correndo o risco de
acabarmos decepcionados. Penso nisto e recordo-me de uma cena de um filme
erótico que adquiriu no meu reportório pessoal de cenas em filmes eróticos um
lugar cativo. Recordar-se-ão de Nine ½ weeks, um filme sofrível com Kim Basinger
e Mickey Rourke a enrolarem-se de nine ½ maneiras diferentes. Pois bem, no meio de
tanto erotismo a cena que trago mais viva na memória é a de um velho
pintor a apreciar nas suas próprias mãos um peixe que acabara de pescar. O pintor vive
refugiado numa casa isolada, junto a um lago, rodeado de árvores e na companhia
da natureza. Não podendo imitar-lhe o modus vivendi, vou satisfazendo as minhas
necessidades de isolamento revisitando velhos refúgios. A Quebrada
de São Romeu é um deles. Esconde-se por detrás de um dos braços de
terra que abraçam a baía de São Martinho do Porto. Protege-me da neblina que
ali trai com frequência agitadas tardes de canícula, cumprindo os requisitos de
um breve exílio com esmero e distinção. Nunca li W. H. Hudson,
mas sinto uma certa afinidade quando Bruce Chatwin e Paul Theroux se lhe
referem nestes termos: «Vazio, desolação, suspensão do intelecto: eram estas as
coisas que Hudson recomendava quando estava em Londres, infeliz, e recordava a
terra das coisas perdidas. O que é a Patagónia de Hudson? É o contrário de uma
pensão em Londres». Ainda não descobri a minha Patagónia, mas gosto sempre de
regressar à Quebrada de São Romeu para aí me reencontrar com o que perdi de mim
próprio. Hoje, lá chegado, sentei-me nas pedras a ler um livro de poemas do
moçambicano Eduardo White. Talvez influenciado pela leitura, certamente
atingido pela paisagem, escrevi isto:
Não desesperes
perante a farsa,
o vazio, a desolação.
Distancia-te
apenas.
Constatada
a insuficiência,
algo mais
para lá de tudoo que possas ter para dar
há-de ainda ficar aquém do desejo.
Uma vaga
encolhe-se
no murmúrio
da espuma,és a vela vergada pelo vento;
através de ti uma barca
voga para portos seguros,
terras de coisas perdidas.
Se agora
verificas a corrosão
do casco,
e no meio da tempestadecomeça a meter água o bote,
paciência. Calar, silenciar, fingir,
é tudo quanto nos sobra
para nos
protegermos do amor.
4 comentários:
O licorne mais do que compreende - também pratica a caminhada solitária. A caminhada de grupo mais parece um bando de excursionistas barulhentos.
é a chamada caminhada anti-social :-)
Prezado rapagão, aqui vão uns ditados tradicionais da Patagónia recolhidos pelo Theroux nos tempos em que usava um saco de papel enfiado pela cara abaixo para ir ao pub:
Estoicismo é a farsa da fatalidade. Distanciamento, mais uma paisagem. Quem mete água tira um peixe. Isolamento é a ginástica da gema. Coisas perdidas, na reciclagem achadas. Quem usa armaduras de espuma ama mais branco. Mais vale vergado que quebrado. A corrosão é a linguagem dos portos.
Creio que foi uma das suas filhas que disse tudo o que, a propósito do seu (magnífico e de passar a língua pelos lábios) texto, havia a dizer: O SILÊNCIO É UM BARULHO FECHADO.
Tudo isto para o chamar ao dever: isole-se mas não se cale.
agradecido
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