domingo, 13 de outubro de 2013

IRMÃOS Collyer

Dei aqui conta de um dos melhores livros que tive o prazer de ler este ano. Hoje, recebi no e-mail esta generosa oferta do Rui Almeida:

IV
HOMER

Lá porque não me interessa
não significa que não entenda.
Homer Simpson

–//–

Para Eduardo Lago, pelo furto

 
Entraram na casa a vinte e um de Março
depois de forçarem as tábuas que tapavam a entrada
e depois de retirarem toneladas de objectos.
Meio século depois um funcionário
entendeu a sinergia e propôs
à UNESCO fixar aquela data
como o dia mundial da poesia.

–//–

 
Hoje doze sicómoros os recordam
num parque discreto.
Homer e Langley Collyer, nova-iorquinos.
Hoje fazem parte da linguagem e da terra:
«este quarto parece o dos Collyer!»
Foram ricos, excêntricos e sujos.
Foram recolectores e obsessivos,
foram grandes doentes e famosos.
Mas os sicómoros nada sabem
destes mexericos; a terra onde repousam só conta
que Langley e Homer Collyer
antes de tudo o mais são irmãos.

 
–//–

 
Está cego. O seu irmão alimenta-o
à base de laranjas. Em cada noite
sai em busca de todos os diários
e de todas as publicações.
«Quatrocentas laranjas por mês,
e ficas curado num instante, Homer.
E quando assim for tenho uma surpresa:
estou a salvaguardar o nosso tempo
para que tu um dia destes o leias.
Para que tu o leias e compreendas
o que vês e sobretudo para que não te assuste
tanta velocidade e tanto ruído».
 

–//–

 
Cento e três toneladas de lixo
(sem contar com vinte e cinco mil livros diferentes
E os corpos de Langley e Homer Collyer).
 

–//–

 
Túneis de papel por onde Homer,
paralítico e cego, não pode aventurar-se.
Langley continua a sair por causa da imprensa
e às vezes por causa da água de uma fonte.
Também cortaram a luz passado um tempo.
Mas disso o seu irmão não se queixa
e Langley está tranquilo.
 

–//–

 
O número dois mil e setenta e oito.
Por fim decidiram demoli-la.
«Melhor assim – disseram os vizinhos –,
este edifício não é mais do que lixo».
 

–//–

 
Homero – entre outras coisas – significa refém.
 

–//–

 
«Parece que o inválido morreu
de inanição e o outro sepultado»
declara o chefe Johnson à imprensa.
E assim foi a manchete.
Hoje podia ser que escrevessem «paralítico».
Já dizia Langley;
a evolução do mundo apalpa-se nos diários.
 

–//–
 

ancinhos, guarda-chuvas, bicicletas, carrinhos de criança, caixas e cofres, uma colecção de armas, candeeiros (de pé, de tecto e de parede), jogos de bolas, a capota de um landó; manequins, postais de raparigas pin-up, bustos de estuque, retratos a óleo, um fogão a querosene, frascos com vísceras humanas, centenas de metros de seda, brocado e damasco, alcatifas, tapetes, quadros, relógios, uma queixada de cavalo, instrumentos musicais (banjos, cornetas, acordeões, um clavicórdio, dois órgãos, cinco violinos e catorze pianos, verticais ou de cauda), partituras em braille, caixas de música, um antigo aparelho de raios X, instrumentos clínicos e cirúrgicos, comboios e aviões de brincar, o velho Ford T e a piroga do pai deles, Herman Collyer.

 
–//–

 
– Temos muitas coisas, disse Homer.
– É verdade, gritou Langley.
– Alegra-me ter-te, disse Homer.
– A mim também, gritou Langley.
– Homer?
– Sim, Langley?
– Estou um pouco atascado e temo muito que hoje não possa sair por causa da imprensa.

 
 

__________________

Nota:

Ver o artigo de Eduardo Lago no El País, de 22 de Novembro de 2009. http://elpais.com/diario/2009/11/22/eps/1258874809_850215.html

Basura (Editorial Delirio, 2011), Ben Clark
Trad. Rui Almeida

Sem comentários: