Dei aqui conta de um dos melhores livros que tive o prazer de ler este ano. Hoje, recebi no e-mail esta generosa oferta do Rui Almeida:
IV
HOMER
Lá porque não me interessa
não significa que não entenda.
Homer Simpson
–//–
Para Eduardo Lago, pelo furto
Entraram na casa a vinte e um de Março
depois de forçarem as tábuas que tapavam a entradae depois de retirarem toneladas de objectos.
Meio século depois um funcionário
entendeu a sinergia e propôs
à UNESCO fixar aquela data
como o dia mundial da poesia.
–//–
Hoje doze sicómoros os recordam
num parque discreto.Homer e Langley Collyer, nova-iorquinos.
Hoje fazem parte da linguagem e da terra:
«este quarto parece o dos Collyer!»
Foram ricos, excêntricos e sujos.
Foram recolectores e obsessivos,
foram grandes doentes e famosos.
Mas os sicómoros nada sabem
destes mexericos; a terra onde repousam só conta
que Langley e Homer Collyer
antes de tudo o mais são irmãos.
–//–
Está cego. O seu irmão alimenta-o
à base de laranjas. Em cada noitesai em busca de todos os diários
e de todas as publicações.
«Quatrocentas laranjas por mês,
e ficas curado num instante, Homer.
E quando assim for tenho uma surpresa:
estou a salvaguardar o nosso tempo
para que tu um dia destes o leias.
Para que tu o leias e compreendas
o que vês e sobretudo para que não te assuste
tanta velocidade e tanto ruído».
–//–
Cento e três toneladas de lixo
(sem contar com vinte e cinco mil livros diferentesE os corpos de Langley e Homer Collyer).
–//–
Túneis de papel por onde Homer,
paralítico e cego, não pode aventurar-se.Langley continua a sair por causa da imprensa
e às vezes por causa da água de uma fonte.
Também cortaram a luz passado um tempo.
Mas disso o seu irmão não se queixa
e Langley está tranquilo.
–//–
Por fim decidiram demoli-la.
«Melhor assim – disseram os vizinhos –,
este edifício não é mais do que lixo».
–//–
Homero – entre outras coisas – significa refém.
–//–
«Parece que o inválido morreu
de inanição e o outro sepultado»declara o chefe Johnson à imprensa.
E assim foi a manchete.
Hoje podia ser que escrevessem «paralítico».
Já dizia Langley;
a evolução do mundo apalpa-se nos diários.
–//–
ancinhos, guarda-chuvas,
bicicletas, carrinhos de criança, caixas e cofres, uma colecção de armas,
candeeiros (de pé, de tecto e de parede), jogos de bolas, a capota de um landó;
manequins, postais de raparigas pin-up,
bustos de estuque, retratos a óleo, um fogão a querosene, frascos com vísceras
humanas, centenas de metros de seda, brocado e damasco, alcatifas, tapetes,
quadros, relógios, uma queixada de cavalo, instrumentos musicais (banjos,
cornetas, acordeões, um clavicórdio, dois órgãos, cinco violinos e catorze
pianos, verticais ou de cauda), partituras em braille, caixas de música, um
antigo aparelho de raios X, instrumentos clínicos e cirúrgicos, comboios e
aviões de brincar, o velho Ford T e a piroga do pai deles, Herman Collyer.
–//–
– É verdade, gritou Langley.
– Alegra-me ter-te, disse Homer.
– A mim também, gritou Langley.
– Homer?
– Sim, Langley?
– Estou um pouco atascado e temo muito que hoje não possa sair por causa da imprensa.
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Nota:
Ver o artigo de Eduardo Lago no El País, de 22 de Novembro
de 2009. http://elpais.com/diario/2009/11/22/eps/1258874809_850215.html
Basura (Editorial Delirio, 2011), Ben Clark
Trad. Rui Almeida
Basura (Editorial Delirio, 2011), Ben Clark
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