Rever Unforgiven/Imperdoável (1992) é como voltar a olhar
para um quadro onde sempre se descobre algo de novo. As melhores obras de arte
são inesgotáveis, oferecem-nos com uma generosidade inigualável infindos
alimentos para o espírito. Este filme de Clint Eastwood (n. 1930) é uma dessas
obras. Já aqui me referi a ele, recupero-o agora com uma perspectiva renovada
que procurará acrescentar algumas notas ao que foi dito. Eastwood chega à personagem de William Munny após imensa experiência adquirida
no género. Quer como actor, quer como realizador, moveu-se invariavelmente bem
no território do Velho Oeste. Em certo sentido, o argumento de Unforgiven chega
a ser convencional. Um fora da lei retirado que volta a pegar nas armas para
ganhar algum dinheiro, convencido por um jovem empertigado da justiça do
serviço. Afinal, a encomenda chega de um grupo de putas que pretende vingar a
violência que foi exercida sobre uma delas. William Munny carrega o fardo da má
fama, assassinou mulheres, crianças, homens velhos e novos, matou, como o
próprio dirá, tudo o que rasteja no mundo, afastando-se dos domínios do mal
para casar com uma jovem mulher que terá visto nele algo mais do que o horror
de acções criminosas. Paira sobre esta personagem uma aura mística, a de um
Oeste envelhecido, perdido algures na memória ou nas caricaturas publicadas por
escritores mais fascinados com a dimensão lendária dos acontecimentos do que
com a verdade. O primeiro plano é de uma beleza singular. Ao longe, no alto de
uma colina, observamos contra o pôr-do-sol uma casa de madeira, uma árvore
desnudada e a silhueta de um homem escavando uma sepultura. Logo a seguir somos
transportados para um saloon onde, num dia de chuva e de lama, uma prostituta é
esfaqueada no rosto. Este contraste assinala o desvio
que a narrativa posterior irá aprofundar, ou seja, o abandono do paraíso para
um regresso ao inferno. Verdade seja dita que o paraíso de Munny, conquanto
possa ser caracterizado pela prática do bem, uma dedicação total à família
(dois filhos pequenos), a pacificação da raiva e do ódio, não deixa de
encontrar na pocilga imunda onde tenta separar porcos com febre de porcos
saudáveis a metáfora ideal para um mundo onde a justiça e o bem nem sempre
andam lado a lado. Como nos aperceberemos, a maldade de William Munny não é
desprovida dos valores que, de certo modo, suportam a justiça. Ao passo que o sheriff
Little Bill, interpretado por um irrepreensível Gene Hackman, denota nos seus procedimentos
justicialistas uma conduta desprovida de qualquer razoabilidade moral. Trata as
putas como se fossem gado, tortura até à morte homens inocentes, impõe a ordem
mais em função de conveniências pessoais do que segundo critérios inscritos na
lei. No fundo, é a esta prática da justiça que se opõe o ódio, a raiva, o mal
de William Munny. Mas Unforgiven/Imperdoável (1992) está longe de ser um western
moral na linha daqueles em que parece inspirar-se, embora o argumento revele
uma inclinação filosófica para problemas axiológicos que a acção disfarça. O
que mais me toca neste filme é a fragilidade de um homem que não logra
libertar-se do passado, que o carrega dentro de si como uma cicatriz invisível,
um homem cativo da consciência e perdido numa espécie de labirinto onde os
caminhos para o bem e para o mal acabam por se entrecruzar. A chuva
que cai sobre a terra, transformando-a na lama onde se enterram as botas
daquele que caminha, por vezes enregelado e febril, outras vezes confiante e
seguro, é o elemento plástico que transfigura essa intersecção dos opostos. E é
curioso constatar o quão discutível se torna a coragem deste herói que não
volta as costas à vingança de um amigo torturado até à morte, nem da puta
esfaqueada que o fez voltar a pegar no coldre; discutível por também ela espelhar
a angústia de um homem face à morte, agonizando em delírios momentâneos o medo
que lhe aparece sob a forma do rosto da sua falecida mulher... coberto de vermes.
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