segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A LIBERDADE DE PÁTIO

 

Os sete contos reunidos em A Liberdade de Pátio (Porto Editora, Setembro de 2013) foram distribuídos por três secções. Na primeira, intitulada Névoas, encontramos dois contos – A Cabeça de Mânlio e A Liberdade de Pátio – de timbre aparentemente absurdo. Aparentemente por ser difícil distinguir o que é absurdo do que o não é num mundo onde a normalidade foi assaltada por um paradoxismo omnipresente. A realidade que esses dois contos evidenciam é de tal modo plausível que pode parecer absurdo recorrermos a tão desgastado conceito para os interpretarmos, sendo talvez preferível sublinhar, desde logo, a reconhecida capacidade de Mário de Carvalho (n. 1944) para reflectir ambientes sociais e tiques humanos sem os tipificar nem encerrar em modelos determinísticos. No primeiro dos contos supracitados, o mais breve, mas também o mais estranho dos sete que compõem a colectânea, um homem atravessa uma cidade transportando «a cabeça de Mânlio» dentro de uma caixa. Nada nos é dito sobre a natureza de tal cabeça, acompanhamos apenas o homem que a transporta por entre cenas quotidianas que seriam banais não fosse dar-se o caso das pessoas com quem o homem se cruza saberem que ele transporta... «a cabeça de Mânlio». Desconfortavelmente arremetidos para o lugar da ignorância, podemos desconfiar, inventar, imaginar o que seja aquela cabeça. Podemos inclusive deixar-nos influenciar pela atmosfera burocrática, ou burrocrática (nas palavras de Herberto Helder), que encerra o breve relato, com homens sentados a secretárias, «carimbando velozmente resmas de papéis», enquanto cumprem tarefas circunscritas pela ditadura dos talões. Não interessa, pois, a natureza da cabeça de Mânlio, na medida em que a sua natureza compreende as dissonâncias que caracterizam a realidade tal como a vivemos diariamente. O segundo conto oferece título à colectânea e remete-nos para algo similar. Narrativa de índole kafkiana, A liberdade de pátio apresenta-nos um recluso tratado com a máxima deferência e até com certa mordomia pelos guardas que o vão mantendo algemado. Neste caso, o estatuto do recluso parece fazer a diferença em certos aspectos de trato, mas não lhe garante mais liberdade do que a do pátio onde pode andar em círculos: «Nunca me forneceram papel e lápis, por mais que insistisse. Mas tinha liberdade de pátio» (p. 24). Texto eventualmente alegórico, A Liberdade de Pátio revela, mais uma vez, o sentimento de incompreensão que uma realidade incoerente desperta. É na frustração sugerida pelas personagens que vislumbramos a ausência de sentido do real, a qual acabará disfarçada pelos três contos do conjunto intitulado Esgares: Os caminhos do sucesso, A força do destino, O passe social. Nestes três contos há uma veia porventura mais satírica, toldada pela actualidade de um país cuja realidade ultrapassa em larga escala os domínios da ficção. O primeiro desmonta com argúcia o chavão do empreendedorismo, com uma história sobre a internacionalização do caldo-verde que está longe de terminar. Prepara-se o herói da narrativa para internacionalizar a açorda de alho. Tudo baseado em factos reais, segundo o autor. Imaginem se ocorresse a Fernando Faria exportar pastéis de nata. No segundo conto, a história da fundação de uma espécie de IPSS que resulta da fusão de quatro bibliotecas privadas: «A ideia era abrirem-na ao público, um certo dia, sob um letreiro com letras douradas: Biblioteca Solidária. Instituição Privada. Boa parte das suas economias ia-se ali escoando, para desespero das descendências que, com o resto, pouco se importavam» (p. 54). No terceiro conto, um indivíduo é quase levado à loucura por faltar à palavra para com um funcionário do Metropolitano. Exagera-se nos termos para melhor fazer sobressair a seriedade das questões, promessas por cumprir, obrigações extremadas numa consciência do dever absolutamente alienante. Por fim, os contos Vacilação e As estátuas de sal fecham o conjunto intitulado Vincos. Duas histórias mais melancólicas do que as anteriores, talvez menos metafóricas, onde a riqueza de linguagem é uma constante e a harmonia dos elementos permite-nos comparar estes contos «à exigência arquitectónica implícita no trabalho de um bom romancista». O flashback que pontua As estátuas de sal oferece a Mário de Carvalho a oportunidade para construir um conto onde a história de uma vida se resume a um episódio do seu decurso, porque há, de facto, em todas as vidas momentos que as condicionam irreversivelmente, quer pelas decisões tomadas, quer pelas que ficam por tomar, quer ainda por aquele «e se» persecutório que nos acompanhará até à hora de sermos definitivamente esquecidos.

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