Os sete contos reunidos em A Liberdade de Pátio (Porto
Editora, Setembro de 2013) foram distribuídos por três secções. Na primeira,
intitulada Névoas, encontramos dois contos – A Cabeça de Mânlio e A Liberdade
de Pátio – de timbre aparentemente absurdo. Aparentemente por ser difícil distinguir
o que é absurdo do que o não é num mundo onde a normalidade foi assaltada por
um paradoxismo omnipresente. A realidade que esses dois contos evidenciam é de
tal modo plausível que pode parecer absurdo recorrermos a tão desgastado
conceito para os interpretarmos, sendo talvez preferível sublinhar, desde logo,
a reconhecida capacidade de Mário de Carvalho (n. 1944) para reflectir
ambientes sociais e tiques humanos sem os tipificar nem encerrar em modelos
determinísticos. No primeiro dos contos supracitados, o mais breve, mas também o mais estranho dos sete que
compõem a colectânea, um homem atravessa uma cidade transportando «a cabeça de
Mânlio» dentro de uma caixa. Nada nos é dito sobre a natureza de tal cabeça,
acompanhamos apenas o homem que a transporta por entre cenas quotidianas que
seriam banais não fosse dar-se o caso das pessoas com quem o homem se cruza
saberem que ele transporta... «a cabeça de Mânlio». Desconfortavelmente arremetidos
para o lugar da ignorância, podemos desconfiar, inventar, imaginar o que seja
aquela cabeça. Podemos inclusive deixar-nos influenciar pela atmosfera burocrática,
ou burrocrática (nas palavras de Herberto Helder), que encerra o breve relato,
com homens sentados a secretárias, «carimbando velozmente resmas de papéis», enquanto
cumprem tarefas circunscritas pela ditadura dos talões. Não interessa, pois, a
natureza da cabeça de Mânlio, na medida em que a sua natureza compreende as
dissonâncias que caracterizam a realidade tal como a vivemos diariamente. O
segundo conto oferece título à colectânea e remete-nos para algo similar.
Narrativa de índole kafkiana, A liberdade de pátio apresenta-nos um recluso
tratado com a máxima deferência e até com certa mordomia pelos guardas que o
vão mantendo algemado. Neste caso, o estatuto do recluso
parece fazer a diferença em certos aspectos de trato, mas não lhe garante mais
liberdade do que a do pátio onde pode andar em círculos: «Nunca me forneceram
papel e lápis, por mais que insistisse. Mas tinha liberdade de pátio» (p. 24). Texto
eventualmente alegórico, A Liberdade de Pátio revela, mais uma vez, o sentimento
de incompreensão que uma realidade incoerente desperta. É na frustração sugerida
pelas personagens que vislumbramos a ausência de sentido do real, a qual acabará
disfarçada pelos três contos do conjunto intitulado Esgares: Os caminhos do
sucesso, A força do destino, O passe social. Nestes três contos há uma veia
porventura mais satírica, toldada pela actualidade de um país cuja
realidade ultrapassa em larga escala os domínios da ficção. O primeiro desmonta
com argúcia o chavão do empreendedorismo, com uma história sobre a internacionalização
do caldo-verde que está longe de terminar. Prepara-se o herói da narrativa para
internacionalizar a açorda de alho. Tudo baseado em factos reais, segundo o
autor. Imaginem se ocorresse a Fernando Faria exportar pastéis de nata. No
segundo conto, a história da fundação de uma espécie de IPSS que resulta da
fusão de quatro bibliotecas privadas: «A ideia era abrirem-na ao público, um
certo dia, sob um letreiro com letras douradas: Biblioteca Solidária.
Instituição Privada. Boa parte das suas economias ia-se ali escoando, para
desespero das descendências que, com o resto, pouco se importavam» (p. 54). No
terceiro conto, um indivíduo é quase levado à loucura por faltar à palavra para
com um funcionário do Metropolitano. Exagera-se nos termos para melhor fazer
sobressair a seriedade das questões, promessas por cumprir, obrigações
extremadas numa consciência do dever absolutamente alienante. Por fim, os
contos Vacilação e As estátuas de sal fecham o conjunto intitulado Vincos. Duas
histórias mais melancólicas do que as anteriores, talvez menos metafóricas, onde a
riqueza de linguagem é uma constante e a harmonia dos elementos permite-nos
comparar estes contos «à exigência arquitectónica implícita no trabalho de um
bom romancista». O flashback que pontua As estátuas de sal oferece a Mário de
Carvalho a oportunidade para construir um conto onde a história de uma vida se
resume a um episódio do seu decurso, porque há, de facto, em todas as vidas momentos
que as condicionam irreversivelmente, quer pelas decisões tomadas, quer pelas
que ficam por tomar, quer ainda por aquele «e se» persecutório que nos
acompanhará até à hora de sermos definitivamente esquecidos.
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