terça-feira, 5 de novembro de 2013

A BANDEIRA VERMELHA

 

Professor de História Contemporânea em Oxford, David Priestland (n. ?) é frequentemente apresentado como especialista em relações entre ideologia e política, com redobrado interesse na história do comunismo. A Bandeira Vermelha (Texto Editores, Agosto de 2013) é um trabalho de fôlego que acompanha e tenta compreender, em múltiplas variantes, a doutrina marxista desde os embriões deixados pela Revolução Francesa até à actualidade (a edição original data de Novembro de 2009). No entanto, Priestland é cuidadoso quanto à determinação de uma origem para o ideal comunista: «O livro inicia-se com a Revolução Francesa, pois é aí que podemos identificar, pela primeira vez, os principais elementos da política comunista, não obstante não terem ainda sido combinados com êxito. Foi, contudo, Karl Marx e o seu amigo Friedrich Engels quem mostrou o verdadeiro poder de uma forma de socialismo que fundiu rebelião com razão e modernidade» (p. 29). Esta concepção, discutível como qualquer outra, permite-nos supor que o autor entende o comunismo a partir de uma ideologização pós-industrial da economia e do mundo do trabalho, deixando de lado raízes muito mais ancestrais que têm que ver com a luta dos povos oprimidos pela sua libertação. Da República platónica à Utopia de Tomás Morus, são imensos os exemplos de que nos poderíamos servir para entender a raiz ontológica de um movimento que é muito mais do que um mero movimento ideológico. Mas Priestland está a escrever história, não está a praticar filosofia. Aceita-se e compreende-se o paradigma, até por questões de pragmatismo historiográfico. O que já não é tão fácil de aceitar é a conclusão a que o historiador chega após setecentas páginas de agradável leitura: «A história do comunismo deverá ter-nos ensinado duas coisas. A primeira lição, agora extraída por muitos autores, é o ponto de destrutibilidade a que pode chegar o pensamento utópico dogmático. A segunda lição, muito mais negligenciada hoje em dia, é o perigo das desigualdades acentuadas e das injustiças notórias, pois elas podem tornar muito fascinantes essas políticas utópicas» (p. 679). Ainda que não incorra no erro crasso de Fukuyama ao decretar o fim da história, David Priestland acaba por apresentar o comunismo hodierno como um zombie que as injustiças e assimetrias do neo-liberalismo podem reavivar. O papão paira sobre o mundo das liberdades made in National Security Agency, hoje hegemonicamente dominado pelos mercados e pelo modelo democrático de um país que à hora em que escrevo acaba de nos brindar com mais um bom exemplo da sua democracia: Médicos foram “cúmplices” de abusos e tortura em Guantánamo e prisões da CIA. Ironias do destino, dirão alguns. A verdade é que sem pretender tomar partido, o historiador David Priestland acaba por fazê-lo. Repleta de perversidades, de crimes sangrentos, de chacinas incompreensíveis, a História do mundo, mais ainda de um movimento político, não pode medir-se apenas pelo sangue derramado, terá também de ter em conta as conquistas, o progresso, as virtudes que nos permitiram ir melhorando o mundo a espaços. Apesar de tudo, reconheça-se, o Partido Comunista foi mais célere a reconhecer o Grande Terror estalinista, pela mão de Nikita Kruschev e o seu famigerado «discurso secreto» (1956), do que a Igreja Católica Apostólica Romana a reconhecer o terror da Inquisição. De resto, é o próprio Priestland quem nos diz que nem tudo ia mal no covil do demónio: «A minha estadia em Moscovo apenas aumentou a minha confusão. Em certos aspectos, Orwell tivera razão. Encontrei o medo. Alguns russos que conheci faziam-me entrar clandestinamente nos seus apartamentos, aterrados com a possibilidade de os seus vizinhos escutarem o meu sotaque estrangeiro; a atmosfera em Moscovo era pesada – quando Gorbachev subiu ao poder, chamaram-se àqueles anos o período de estagnação. Encontrei também cinismo relativamente ao regime e críticas à sua hipocrisia e corrupção. Ainda assim, em muitos outros aspectos, a Rússia não poderia ser mais diferente do mundo retratado por Orwell. A vida quotidiana da maioria das pessoas era relativamente descontraída, ainda que desprovida de confortos materiais. Apercebi-me também de um orgulho nacionalista genuíno na força e nas realizações da Rússia sob o comunismo e de um verdadeiro empenho emocional na paz mundial e na harmonia global» (p. 20). Ora, talvez esteja a interpretar mal, mas este retrato distancia-se por completo das condenações supérfluas do ancien régime. O que este livro tem de bom não é, pois, o que repete de uma história que estamos fartos de saber, embora seja sempre útil recordar, mas antes o que acrescenta a essa história, com uma leitura frequentemente alicerçada nas produções culturais a partir das quais podemos compreender com interesse a paisagem dos tempos. A relevância do teatro, do cinema, da literatura, da música, das artes em geral para a encenação da História é um sublinhado fundamental neste A Bandeira Vermelha. Ao leitor português que percorra estas páginas, da Revolução Francesa à perestroika, interessará muito mais esse sublinhado do que uma revisão da ascensão e queda da URSS, da “grande caminhada” chinesa iniciada por Mao até ao hibridismo económico da actualidade ou da admirável resistência cubana. Para terminar, que a prosa vai longa, observe-se como fica Portugal na fotografia: «Uma das primeiras vítimas do choque do petróleo foi o regime autoritário de Marcello Caetano em Portugal e, com este, o império português em África. Caetano andava a tentar liberalizar o velho regime, perante a resistência de conservadores, mas em 1974, enfraquecido pela crise económica, foi derrubado por um grupo politicamente ecléctico de oficiais subalternos do exército, insatisfeitos com a condução das guerras africanas. O golpe decorreu sem derramamento de sangue e ficou conhecido por «Revolução dos Cravos», nome alusivo aos cravos vermelhos brandidos pelos revoltosos como símbolo das suas intenções pacíficas. Em lugar de sinalizarem o desencadeamento da revolução com estandartes ou cornetins, os líderes da rebelião indicaram aos seus apoiantes que aguardassem pela transmissão radiofónica da canção portuguesa participante no Festival Eurovisão da Canção» (p. 566).

3 comentários:

Anónimo disse...

Excelente!
Ftavora

hmbf disse...

Agradecido.

joão melgarejo disse...

talvez e não que seja isso determinante, mas por ser inglês, habitar uma ilha, o individualismo se faz de maior radicalidade, o autor tenda a conter nos limites do aceitável, concluões que poderiam não ficar bem entre os seus (para quem evidentemente escreveu). prova disso é o trecho selecionado (p.20) em boa hora pelo blogueiro.