Professor de História Contemporânea em Oxford, David
Priestland (n. ?) é frequentemente apresentado como especialista em relações
entre ideologia e política, com redobrado interesse na história do comunismo. A
Bandeira Vermelha (Texto Editores, Agosto de 2013) é um trabalho de fôlego que
acompanha e tenta compreender, em múltiplas variantes, a doutrina marxista
desde os embriões deixados pela Revolução Francesa até à actualidade (a edição
original data de Novembro de 2009). No entanto, Priestland é cuidadoso quanto à
determinação de uma origem para o ideal comunista: «O livro inicia-se com a
Revolução Francesa, pois é aí que podemos identificar, pela primeira vez, os
principais elementos da política comunista, não obstante não terem ainda sido
combinados com êxito. Foi, contudo, Karl Marx e o seu amigo Friedrich Engels
quem mostrou o verdadeiro poder de uma forma de socialismo que fundiu rebelião
com razão e modernidade» (p. 29). Esta concepção, discutível como qualquer
outra, permite-nos supor que o autor entende o comunismo a partir de uma
ideologização pós-industrial da economia e do mundo do trabalho, deixando de
lado raízes muito mais ancestrais que têm que ver com a luta dos povos
oprimidos pela sua libertação. Da República platónica à Utopia de Tomás Morus,
são imensos os exemplos de que nos poderíamos servir para entender a raiz ontológica
de um movimento que é muito mais do que um mero movimento ideológico. Mas
Priestland está a escrever história, não está a praticar filosofia. Aceita-se e
compreende-se o paradigma, até por questões de pragmatismo historiográfico. O que já não
é tão fácil de aceitar é a conclusão a que o historiador chega após setecentas
páginas de agradável leitura: «A história do comunismo deverá ter-nos ensinado
duas coisas. A primeira lição, agora extraída por muitos autores, é o ponto de
destrutibilidade a que pode chegar o pensamento utópico dogmático. A segunda
lição, muito mais negligenciada hoje em dia, é o perigo das desigualdades
acentuadas e das injustiças notórias, pois elas podem tornar muito fascinantes
essas políticas utópicas» (p. 679). Ainda que não incorra no erro crasso de
Fukuyama ao decretar o fim da história, David Priestland acaba por apresentar o
comunismo hodierno como um zombie que as injustiças e assimetrias do neo-liberalismo
podem reavivar. O papão paira sobre o mundo das liberdades made in National
Security Agency, hoje hegemonicamente dominado pelos mercados e pelo modelo
democrático de um país que à hora em que escrevo acaba de nos brindar com mais
um bom exemplo da sua democracia: Médicos foram “cúmplices” de abusos e
tortura em Guantánamo e prisões da CIA. Ironias do destino, dirão alguns. A
verdade é que sem pretender tomar partido, o historiador David Priestland acaba
por fazê-lo. Repleta de perversidades, de crimes sangrentos, de chacinas
incompreensíveis, a História do mundo, mais ainda de um movimento político, não
pode medir-se apenas pelo sangue derramado, terá também de ter em conta as
conquistas, o progresso, as virtudes que nos permitiram ir
melhorando o mundo a espaços. Apesar de tudo, reconheça-se, o Partido Comunista
foi mais célere a reconhecer o Grande Terror estalinista, pela mão de Nikita
Kruschev e o seu famigerado «discurso secreto» (1956), do que a Igreja Católica
Apostólica Romana a reconhecer o terror da Inquisição. De resto, é o próprio
Priestland quem nos diz que nem tudo ia mal no covil do demónio: «A minha
estadia em Moscovo apenas aumentou a minha confusão. Em certos aspectos, Orwell
tivera razão. Encontrei o medo. Alguns russos que conheci faziam-me entrar
clandestinamente nos seus apartamentos, aterrados com a possibilidade de os
seus vizinhos escutarem o meu sotaque estrangeiro; a atmosfera em Moscovo era
pesada – quando Gorbachev subiu ao poder, chamaram-se àqueles anos o período
de estagnação. Encontrei também cinismo relativamente ao regime e críticas à
sua hipocrisia e corrupção. Ainda assim, em muitos outros aspectos, a Rússia
não poderia ser mais diferente do mundo retratado por Orwell. A vida quotidiana
da maioria das pessoas era relativamente descontraída, ainda que desprovida de
confortos materiais. Apercebi-me também de um orgulho nacionalista genuíno na
força e nas realizações da Rússia sob o comunismo e de um verdadeiro empenho
emocional na paz mundial e na harmonia global» (p. 20). Ora, talvez esteja a
interpretar mal, mas este retrato distancia-se por completo das condenações
supérfluas do ancien régime. O que este livro tem de bom não é, pois, o que
repete de uma história que estamos fartos de saber, embora seja sempre útil
recordar, mas antes o que acrescenta a essa história, com uma leitura
frequentemente alicerçada nas produções culturais a partir das quais podemos
compreender com interesse a paisagem dos tempos. A relevância do
teatro, do cinema, da literatura, da música, das artes em geral para a
encenação da História é um sublinhado fundamental neste A Bandeira Vermelha. Ao
leitor português que percorra estas páginas, da Revolução Francesa à perestroika,
interessará muito mais esse sublinhado do que uma revisão da ascensão e queda
da URSS, da “grande caminhada” chinesa iniciada por Mao até ao hibridismo económico
da actualidade ou da admirável resistência cubana. Para terminar, que a prosa vai
longa, observe-se como fica Portugal na fotografia: «Uma das primeiras vítimas
do choque do petróleo foi o regime autoritário de Marcello Caetano em Portugal
e, com este, o império português em África. Caetano andava a tentar liberalizar
o velho regime, perante a resistência de conservadores, mas em 1974, enfraquecido
pela crise económica, foi derrubado por um grupo politicamente ecléctico de
oficiais subalternos do exército, insatisfeitos com a condução das guerras
africanas. O golpe decorreu sem derramamento de sangue e ficou conhecido por
«Revolução dos Cravos», nome alusivo aos cravos vermelhos brandidos pelos
revoltosos como símbolo das suas intenções pacíficas. Em lugar de sinalizarem o
desencadeamento da revolução com estandartes ou cornetins, os líderes da
rebelião indicaram aos seus apoiantes que aguardassem pela transmissão
radiofónica da canção portuguesa participante no Festival Eurovisão da Canção»
(p. 566).
3 comentários:
Excelente!
Ftavora
Agradecido.
talvez e não que seja isso determinante, mas por ser inglês, habitar uma ilha, o individualismo se faz de maior radicalidade, o autor tenda a conter nos limites do aceitável, concluões que poderiam não ficar bem entre os seus (para quem evidentemente escreveu). prova disso é o trecho selecionado (p.20) em boa hora pelo blogueiro.
Enviar um comentário