A mulher do Marshal Matt Morgan, de ascendência indígena,
regressa com o filho de uma visita à família instalada nas reservas. É abordada
por dois cowboys que tenta afastar, deixando na face de um deles a cicatriz de
uma chicotada. A charrete que conduz despista-se, os cowboys aproveitam o despiste
para a deter e violam-na. Não assistimos à violação. Esta é sugerida por uma
camisa rasgada, o tronco a descoberto, gritos. Entretanto, a câmara volta-se
para o filho da vítima, que consegue escapulir-se com os cavalos dos criminosos.
Enquanto estes acontecimentos têm lugar, Matt Morgan entretém-se a contar
histórias de duelos antigos a um grupo de miúdos que lhe perguntou pelo filho.
O interesse das crianças é subitamente atalhado pela chegada daquele. O resto é
previsível. O Marshal mete-se a galope na direcção do local do crime, onde irá
encontrar a mulher já morta. O maior desafio que um filme nos coloca é não o olharmos
como olhamos para a vida. A vida obriga-nos a um pragmatismo apenas interrompido
quando os acidentes estimulam o espanto. Um filme pode ser uma sucessão de
acidentes que perpetuam durante largos minutos esse espanto. Last Train from
Gun Hill/O Último Comboio de Gun Hill (1959), de John Sturges (1910-1992),
coloca frente a frente Kirk Douglas e Anthony Quinn, dois actores cuja presença
é suficiente para garantir um certo alvoroço. Mas nos filmes de Sturges a representação
raramente se impõe enquanto elemento mais atractivo. O início deste filme é
paradigmático. Kirk Douglas é Matt
Morgan, o viúvo a quem caberá descobrir os assassinos da sua mulher, dividido
entre o dever da lei e a vontade de vingança. Anthony Quinn é Craig Belden,
fazendeiro de sucesso, pai de Rick Belden, o violador que ficou com a marca do
chicote na cara. Morgan e Belden são amigos de longa data, separados por
percursos de vida diferentes. Reencontram-se agora nesta trágica circunstância.
Um procura proteger o filho da forca, o outro tem que fazer justiça. Estes dramas,
tão frequentes nos westerns, são porventura mais raros na chamada vida real. É o
tipo de situação que exemplifica conflitos morais sobre os quais a filosofia
sempre teve muito a dizer. Mas o cinema, enquanto arte, transforma-os em algo
mais. Não deixando de motivar reflexões diversas, estes dramas têm o propósito
claro de atrair a atenção do público (entendido aqui na sua mais estrita
condição de espectador). A sedução é inerente às dúvidas motivadas pelo
contexto, as quais podem ser formuladas na espectativa hipotética de pensarmos:
o que faríamos de fosse connosco? A sedução não garante a arte. O que
transforma este tipo de discurso numa forma de expressão é o modo como os
elementos se articulam para nos provocar emoções que escapam à racionalidade do
discurso. Daí que nos incomode uma cena supérflua como aquela em que o Marshal
Matt Morgan, já com Rick Belden algemado à cama onde aguardam pelo último comboio
de Gun Hill, expõe o seu prisioneiro ao fogo trocado entre defesa e acusação. É
como se estivesse a fazer do réu um escudo. No fundo, se quisesse mesmo levá-lo
à justiça não faria aquilo. E se a intenção era matá-lo, tinha a pistola na
mão. Digamos que o seu desejo de vingança pretende ver Rick Belden morto, mas a
consciência do dever impele-o a levar Rick Belden à justiça. A mesma inquietude
é motivada por Linda (Carolyn Jones). A amante de Craig Belden coloca-se do
lado do Marshal, auxiliando-o contra o amante e contra o enteado. Movida,
talvez, pelo rancor, ela não quer o
bem de uns nem o mal de outros, procura apenas afirmar a sua autonomia numa
cidade onde todos parecem dependentes e servis. Este desejo de afirmação, demasiado
convencional para que o consideremos artístico, afasta-se das convenções tal
como o comportamento de Matt Morgan: são erupções do ser na armadura do dever.
Em 1959, Kirk Douglas já tinha feito todos os filmes que o consagraram. Estava no
auge da sua carreira. Anthony Quinn também tinha feito Viva Zapata! (1952) e
Lust for Life (1956), filmes onde arrecadou dois oscars (no segundo,
curiosamente, contracenando com Douglas). Eram duas estrelas incontestáveis no
universo da representação. Este western patenteia os pergaminhos, deixando
implícitas outras artes que não são meramente representativas. Marcas que
permitem dar expressão a sentimentos e emoções aparentemente contraditórios,
não se limitando a transfigurar a vida – tornando-a arte.
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