Padeço de uma doença sem cura. O sintoma
mais evidente é este riso escarninho que se me forma entre o pensamento e a
acção sempre que leio más propostas em livros inteligentes. Breves Notas Sobre
as Ligações (Llansol, Molder e Zambrano), publicado pela Relógio D’Água em
Abril de 2009, tem algumas dessas propostas capazes de fazer mudar o mundo.
Para melhor, pudessem ser levadas à prática. Gonçalo M. Tavares não tem culpa,
porém, que o mundo vá mudando para pior (constatação subjectiva). Fez o seu
trabalho, observou, reflectiu, imaginou, propôs. Ao leitor caberá pouco mais
que isto, sublinhar, criticar e dar conta na esperança de que a intenção se transforme em
facto reflexo.
Primeira:
A distribuição da luz numa cidade a depender do trabalho
filosófico e individual que cada cidadão desenvolve (eis uma hipótese). Brutos
e ingénuos terão direito a uma luz urbana reduzida.
Se, numa rua, no seu n.º 25, 1.º andar direito, mora um filósofo,
a cidade e os seus serviços de manutenção da claridade deverão ter o cuidado de
canalizar para aí grandes quantidades de electricidade individual
Porém, noventa por cento da cidade permanecerá às
escuras.
Temo que a percentagem fosse maior, mas poderíamos fazer
o mesmo com água e gás. Viveríamos às escuras, bem melhor que viver neste às claras sem LUZ. O problema que esta proposta levanta é: quem recolheria
o lixo?
Segunda:
2 – Pegar num livro religioso e colocá-lo dentro da água
em que se acabou de tomar banho.
Deixá-lo estar aí até que as páginas se comecem a
desfazer.
Deixar que o livro se desfaça por completo até
desaparecer na água.
Depois de aguardar pacientemente o tempo necessário –
semanas, talvez -, tomar banho naquela água onde agora está incluído, ou
diluído, o livro religioso.
Água religiosa, murmuras. Água com palavras santas.
Considerando que nos tempos correntes, como nas águas,
houve uma reconhecível inversão em matéria religiosa, somos levados a crer, por
fé, que as palavras seriam substituídas por números santos. Livros religiosos
na actualidade são livros de contas e recibos verdes, livros de economia. Também
há livros à prova de água, embora não saibamos de ninguém que os tome por
religiosos. Banho de sal grosso purifica o leitor. A técnica metafísica do Gonçalo apenas purifica o livro.
Terceira:
Ler como forma de exercício físico, ler como modalidade
desportiva: atletismo, futebol, ginástica, ler um ensaio, andebol, patinagem
artística, ler um poema, ler um romance.
Conceber um ginásio onde o utente escolhe entre aeróbica,
ginástica ou a leitura de um livro de ficção; cada uma com a duração de hora e
meia, três aulas de movimento.
Nesta proposta a leitura adquire modalidades facilmente
reconhecíveis no acto de escrever. Parece haver na escrita um exercício desgastante
que escapa à leitura, aparentemente caracterizada pela descontracção muscular. A
escrita ajuda a perder calorias: step, training, zumba, cardiofitness, body
pump, jump, cycling, insanity. Literatura estrangeira, livro importado. Pular
alivia, saltar liberta. Recuperar os ginásios clássicos talvez ofereça um outro
equilíbrio à imaginação. Escusado conceber sobre o que pode ser reciclado. É
mais ecológico.
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