quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

NOTA BREVE

Tendo ainda como ponto de partida Breves Notas Sobre as Ligações (Llansol, Molder e Zambrano), de Gonçalo M. Tavares (Relógio D’Água, Abril de 2009), avulsas considerações sobre poesia. A páginas 36 escreve-se: «Quando um segredo é publicado, dizes: eis a poesia». Aponta-se aqui, julgo, para uma ideia de poesia enquanto revelação. O segredo é o que está oculto, a publicação do segredo consiste numa revelação. A este dar a ver o que está oculto, explicitando-o, podemos dar o nome de poesia. Teoria clássica desmentida pela prática. Coloco-me na posição de leitor, posição relativa onde a relação com o texto poético (sentido mais restrito de poesia) se processa como num jogo de linguagem que prescinde da interpretação. Lê-se um poema como quem olha para uma paisagem, não havendo a preocupação de interpretá-la como haverá a predisposição para assimilá-la. A assimilação do texto poético corresponde a uma inclinação dos sentidos para se deixarem inebriar, espantar, alienando a razão que transforma o corpo numa máquina. Daí que a leitura de um poema corresponda a um momento de avaria que a máquina provoca a si própria, uma espécie de vontade de falhar, de errar (errância), de suspender a lógica, de vagabundear pelos sentidos da linguagem ao encontro do diverso (Llansol) e do inesperado. Neste sentido, a poesia não revela. Quando muito, desbrava. Neste sentido, a poesia surge num terreno onde mistério e revelação deixam de se opor. A poesia não revela o segredo, enterra-o. Mais facilmente se concorda, portanto, com a consideração expressa na página 50: «A certo momento da História, conhecer deixou de ser efeito do escrever, do pintar, do desenhar, e passou a ser efeito do apagar. Uma definição de poesia? Talvez. Retira de uma frase todas as palavras que a natureza não exige, eis uma definição possível para a poesia. Para o seu ofício, para o seu esforço». Inútil procurar uma definição de poesia, mas a hipótese de uma definição agrada-nos sempre. Porque é mera hipótese, condição que apenas reforça a inutilidade da intenção. Neste caso, definiríamos poesia pela economia de palavras. Discurso sintético, o “discurso poético” pressupõe uma teoria do conhecimento semelhante à teoria que Cage pensou para a música. Por outro lado, dificilmente aceitamos que a natureza exija palavras a uma frase. A natureza não exige palavras, se a pensarmos de um modo absoluto. Fenómeno exclusivamente humano, a linguagem alimenta a natureza humana. Desvia o homem, porém, da força bruta, da energia e do movimento que orienta os outros seres naturais. A linguagem enfraquece o homem; o esforço da poesia, enquanto forma de expressão arreigada à linguagem, talvez seja fortalecê-lo, mas não apenas pela economia de palavras, também pelo excesso. O excesso liberta, embriaga, leva o ser ao ponto de delírio (Artaud) onde a poesia acontece. Verdade que a poesia simplifica, ao contrário do que tantas vezes se pretende. Os próprios críticos referem-se amiúde à complexidade como se estivessem a referir-se a uma vantagem. Mas os críticos são críticos, estão ainda no plano lógico da máquina concertada. Pouco importa o que digam. Última consideração, porventura a melhor: «O poema é uma substância que remete para as surpresas da física. Um verso avança como se fosse uma coisa com electrões e desassossego. Tem núcleo, uma carga positiva e uma carga negativa». Eis a poesia a falar sobre si própria, num contexto onde se assume já a orgânica de uma dimensão (meta)física. Pena que se adiante: «O verso terá ainda de ser um medicamento para a linguagem, algo que traz de volta a saúde perdida nas frases de circunstância, nos lugares-obscenamente-comuns, lugares prostituídos da linguagem». Nada tem que ser o verso que não o seja já, daí ser verso: face posterior. Medica adoecendo, felizmente; não traz de volta a saúde perdida, não tanto quanto manda a saúde às favas e diz: vem lugar-comum, junta-te a mim, aqui sentados a olhar um para o outro podemos ser frente e verso, capa e contracapa do mesmo corpo bêbado que ri dentro da dor, que respira a cantar no delírio das palavras, que ajuda a morrer mais um pouco aquele que padece de si próprio.

1 comentário:

Vento disse...
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