Não recordo onde li, nem se é fruto da minha imaginação, que
Dostoievski terá escrito Noites Brancas na esperança de amealhar uns trocos
para a sopa. É mais comum do que se pensa, esta cedência do génio à vulgaridade
quando o estômago reclama conforto. Entre nós exemplos não faltam, tendo um dos
mais deliciosos sido recuperado pelo editor Vítor Silva Tavares em 1979. Trata-se
de Maria! Não me mates, que sou tua mãe!, texto originalmente publicado em
1848, que mais de um século depois inaugurou a colecção contramargem, à laia de
folheto de cordel, com tiragem de 1000 exemplares (!) ao preço público de
30$00. O tempo inflacionou a edição, valendo a pena o investimento também pela
nota introdutória assaz esclarecedora:
(…)
Em 1848 – o ano que mais nos interessa – Camilo completa
vinte e três de idade e está no Porto sem saber de família, nem de amigos, nem
de comida certa. Não passa de um «anjo puro de inocência», diz ele, «um anjo
literato» quando salta «na Ribeira do Peixe da invicta cidade». A colaboração
que dois jornais lhe aceitam é mal paga. O Hotel Francês da Rua da Fábrica,
esse… quer as mensalidades em dia.
- Que fazer?
- Maria! Não me mates, que sou tua mãe!... anónimo…
tipografia do Eco… de cordel!
Tomás Ribeiro recordará um dia no Imparcial: «Os jornais
noticiaram então o assassinato de uma pobre velha, atribuído à sua própria
filha, e dizem hoje informações insuspeitas que falsamente lho atribuíram. Camilo
escreveu numa noite o pequeno livro que ia sendo consecutivamente impresso.» E
acrescenta: «No dia seguinte a comovente narrativa, comprada sofregamente,
salvava o poeta duma bancarrota.»
(…)
Ironia das ironias, cento e tal anos depois este faro
comercial que a necessidade apurou foi transformado em «acto de contracultura
admirável». Mais: «instante magnífico em subversão literária». Assim
apresentado em 1979, pelo editor português mais alegremente falido de que há
memória. Talvez seja este o preço a pagar pela liberdade de espírito, um corpo
magrinho, um estômago ronronante, um caldo verde servido pela Paula Moura
Pinheiro.
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