terça-feira, 10 de dezembro de 2013

SOPA DOS POBRES


Não recordo onde li, nem se é fruto da minha imaginação, que Dostoievski terá escrito Noites Brancas na esperança de amealhar uns trocos para a sopa. É mais comum do que se pensa, esta cedência do génio à vulgaridade quando o estômago reclama conforto. Entre nós exemplos não faltam, tendo um dos mais deliciosos sido recuperado pelo editor Vítor Silva Tavares em 1979. Trata-se de Maria! Não me mates, que sou tua mãe!, texto originalmente publicado em 1848, que mais de um século depois inaugurou a colecção contramargem, à laia de folheto de cordel, com tiragem de 1000 exemplares (!) ao preço público de 30$00. O tempo inflacionou a edição, valendo a pena o investimento também pela nota introdutória assaz esclarecedora:

(…)
Em 1848 – o ano que mais nos interessa – Camilo completa vinte e três de idade e está no Porto sem saber de família, nem de amigos, nem de comida certa. Não passa de um «anjo puro de inocência», diz ele, «um anjo literato» quando salta «na Ribeira do Peixe da invicta cidade». A colaboração que dois jornais lhe aceitam é mal paga. O Hotel Francês da Rua da Fábrica, esse… quer as mensalidades em dia.
- Que fazer?
- Maria! Não me mates, que sou tua mãe!... anónimo… tipografia do Eco… de cordel!
Tomás Ribeiro recordará um dia no Imparcial: «Os jornais noticiaram então o assassinato de uma pobre velha, atribuído à sua própria filha, e dizem hoje informações insuspeitas que falsamente lho atribuíram. Camilo escreveu numa noite o pequeno livro que ia sendo consecutivamente impresso.» E acrescenta: «No dia seguinte a comovente narrativa, comprada sofregamente, salvava o poeta duma bancarrota.»

(…)


Ironia das ironias, cento e tal anos depois este faro comercial que a necessidade apurou foi transformado em «acto de contracultura admirável». Mais: «instante magnífico em subversão literária». Assim apresentado em 1979, pelo editor português mais alegremente falido de que há memória. Talvez seja este o preço a pagar pela liberdade de espírito, um corpo magrinho, um estômago ronronante, um caldo verde servido pela Paula Moura Pinheiro. 

Sem comentários: