Tendo por embrião um suplemento literário, primeiro, e uma
folha cultural, depois, a editora & etc surgiu em 1974 com a edição de
Coisas, reunião de textos e ilustrações de gente tão distinta como
Baptista-Bastos e Pedro Oom, Nelson de Matos e Paulo da Costa Domingos. Desde então,
afirmou-se como uma das mais invulgares editoras portuguesas. Podemos afirmar
que de algum modo & etc transformou-se num conceito, alicerce estético,
infelizmente nem sempre ético, de outras editoras que lhe procuram respeitar a
marca com maior ou menor consistência. Nesse conceito cabe, desde logo, uma atenção
especial ao corpo gráfico dos livros. O formato quadrado (falso) é hoje uma imagem
de marca, mas também as capas em colaboração com artistas plásticos vários
(predominam desenho e colagem, a fotografia está praticamente ausente). Outro aspecto a
assinalar consiste num catálogo com especial inclinação para uma literatura
insubordinada, onde cabem modernistas e futuristas, surrealistas dissidentes,
textos iconoclastas e picarescos, poesia. Neste domínio, & etc impõe-se pelo
sincretismo evidente, o que faz desta uma casa heteróclita cujo culto foi sendo
alimentado tanto por autores como por leitores (não se distinguindo, tantas
vezes, uns dos outros). Por detrás do conceito, a admirável persistência e
obstinação de um editor chamado Vítor Silva Tavares, que entende «o livro como
parte integrante da acção poética e não como mercadoria descartável» (p. 11). Entramos
aqui nesse território complexo onde a estética encontra a ética, sendo
sobejamente sublinhados, mais do que posturas anti-académicas ou contraculturais,
uma atitude resistente à mercantilização do livro, entendido não apenas como
artigo comercializável (que o é) mas também e mormente enquanto objecto artístico
(que raramente chega a ser). De facto, cada livro da & etc, independentemente
até dos textos que encerra, é sempre um objecto artístico em si, de tiragem única (uma excepção confirma a regra) e IRREVOGÁVEL. Merecem, pois,
por todas e mais algumas razões, ser celebrados estes quarenta anos de resistência,
uma resistência à vulgarização que o lucro apressado promove, uma resistência à
domesticação da vontade que actua livremente num mundo de condenações perpétuas
pré-natais, uma resistência verdadeiramente política, no sentido em que se
exerce não à margem da sociedade, nem como por vezes afirma o
editor em paralelo com o meio, mas dentro dessa mesma sociedade como uma erupção
capaz de abalar os pilares hipócritas do regime. Um livro apreendido em plena
democracia (plena de penas) é disso exemplo. O mesmo não sucederá, para bem dos
leitores, com este & etc – Uma Editora no Subterrâneo (Letra Livre,
Novembro de 2013), coordenado e concebido pelo poeta e editor da Frenesi Paulo
da Costa Domingos, autor da casa desde a primeira hora. É bom que se chame a
atenção para o facto de não ser este livro um mero exercício comemorativo,
tratando-se de um dos mais importantes livros publicados este ano em
Portugal. Reproduções e testemunhos vários, entre os quais sublinho os de
Emanuel Cameira, Júlio Henriques, Pedro Piedade Marques e Rocha de Sousa, ajudam
a caracterizar e a compreender (ao mesmo tempo que o aprofundam) este exemplo editorial,
que não estando só no mundo nem sendo exclusivo na história portuguesa, é sem dúvida
alguma de uma coerência rara. Isto é de uma relevância extrema numa época onde
editores com trabalhos estimáveis se vêem obrigados a conviver com regras de
mercado que atiram para a penumbra livros essenciais, oferecendo uma luz desmesurada
e mesmo incandescente a lixo produzido com a acuidade da fast food. Constatá-lo,
ao contrário do que possa parecer, não “elitiza” a excepção ou, usando
nomenclatura mais em voga, a alternativa. Os tempos que correm facilitam o
risco, o feiticeiro transforma-se no feitiço, a excepção vê-se apreendida pela
norma, a própria lei subverte o crime. Tivemos este ano o triste exemplo do “fenómeno
Herberto”, dispensa-se um “fenómeno & etc”. O que aqui está em causa é algo
diverso, tem que ver com a possibilidade da vida livre, sendo certo que livres
ou não estaremos sempre todos dependentes uns dos outros para que a obra
aconteça e a poesia se faça.
3 comentários:
O quê? Um livro apreendido? Fui a pesquisas que deram em nada. É Plena de Penas galinha que choque? Como é possível? De que tratava e de quem era o livro?
Este: http://aventar.eu/2012/05/23/hoje-da-na-net-o-bispo-de-beja-de-homem-pessoa/
Obrigada Henrique por generoso esclarecimento. Para quem se atreveu, sou toda orificium ani na esperança de que contra a censura, se erga um valente punho. A vós arrojados, uma Fescénia. Nem vale a pena moralizar com processos Casa Pia. Portugal é um filme de terror e coragem mesma é ficar por aí. Força!
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