segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

HISTÓRIAS DE LOUCURA NORMAL

Há dias dei por mim a padecer de síndrome bukowskiana, a qual se manifesta, em termos gerais, num desconforto agudo perante a realidade “pequeno-burguesa”. É como assistir aos episódios de Breaking Bad de pantufas calçadas e manta sobre as coxas, indiferente à vulgaridade dos dias e sem vontade de mudar o que quer que seja. Partindo do princípio que o leitor compreenderá a insatisfação, podendo até considerar-se cúmplice, em doses desiguais, deste desconforto, escusado será lembrar que Charles Bukowski (1920-1994) foi, enquanto escritor, uma personagem de si próprio. Lê-lo consiste em assumir a ilusão de que nos relacionamos com ele, embora tal não se verifique de facto. E não se verifica, desde logo, porque o Bukowski dos livros, o dos vídeos disponíveis e das fotografias que registaram o mito - «mito Bukowski (na verdade, sou um cobarde)» - na sua face mais caricata, está nos antípodas de tudo aquilo que nós alguma vez seremos. Aproxima-nos uma desconfiança declarada perante as virtudes da humanidade: «A raça humana sempre me tinha causado asco. Fundamentalmente, aquilo que a tornava repugnante era a doença das relações familiares, onde se incluíam o casamento, as trocas de poder e ajuda, que à semelhança de uma ferida, uma lepra, se tornava então: o nosso vizinho do lado, a nossa vizinhança, o nosso bairro, a nossa cidade, o nosso condado, o nosso estado, o nosso país… toda a gente agarrada aos cus uns dos outros na colmeia da sobrevivência por causa de uma imbecilidade de animalesco receio» (p. 88). Mas afasta-nos o excesso, o exagero, o risco que apenas os duros pisam sem temer consequências radicais. Afasta-nos a noção trágica da vida, o compromisso: «Viver é fácil: basta deixar andar. E ter algum dinheiro. Outros que travem as guerras, os outros que vão para a prisão» (p. 52). Sendo o corpo que se joga, é a própria vida que se arrisca. Disso nos dão conta os textos reunidos no volume Histórias de loucura normal (Editora Objectiva/Alfaguara, Outubro de 2013), traduzidos para português por Vasco Gato, originalmente colhidos na colectânea Erections, Ejaculations, Exhibitions, and General Tales of Ordinary Madness (1972). Marco Ferreri apoiou-se neste material para o argumento do filme Storie di ordinaria follia (1981), primeira incursão cinematográfica pela vida alucinada de Charles Bukowski. Apesar do discurso cru, do tom arrogante, desencantando e saturado, da exibição de uma certa violência que encena o palco onde a marginalidade actua, estes textos não são tão fáceis quanto aparentam. Alcoólico e misógino, o autor ora fala de si na primeira pessoa ora se reinventa em alter-egos mais ou menos recorrentes. Adeus, Watson é uma arte poética que transforma o hipódromo e as corridas de cavalos naquilo que a tourada terá sido para Hemingway: «para mim, o hipódromo revela-me rapidamente onde estão as minhas fraquezas e onde estão as minhas forças, e revela-me como me sinto nesse dia e revela-me como ninguém pára de mudar, andamos TODOS em mudança a toda a hora, e como nos damos tão pouco conta disso. / e a esfola da gentalha é o filme de terror do século. TODOS perdem» (p. 115). A disparidade narrativa é evidente, salta-se de tema para tema como numa conversa de café. Há textos que excedem a clareza do discurso pelo desvairo dos argumentos (um cobertor assassino, uma mulher com um jardim zoológico em casa…), deixando-nos na dúvida sobre possíveis alusões metafóricas. Enraizados num cinismo clássico, outros textos são mera prosa diarística, resvalam para a crónica de costumes, relatam momentos e circunstâncias aparentemente reais com frequente e declarado desdém para com o universo literário predominante e uma ironia que não pode ser confundida com auto-indulgência: «lá fora eram os carros estacionados, e as pessoas de um lado para o outro. Nenhuma delas lia poesia, falava sobre poesia, escrevia poesia. para variar, a multidão pareceu-me bastante sensata» (p. 127) São inúmeras as passagens em que a autocrítica ultrapassa os limites da sanidade, confessam-se tendências suicidas, espelham-se e assumem-se defeitos insuperáveis, é como se a escrita fosse uma automutilação: «…e senti-me, estranhamente, envergonhado de qualquer coisa. culpado, mal, incompleto, como um monte de merda, como uma bala de metralhadora desperdiçada» (p. 198); ou: «ele tem 43. eu tenho 48. pareço pelo menos 15 anos mais velho do que ele. e sinto uma certa vergonha. a barriga saliente. aquele ar abatido. o mundo levou-me muitas horas e anos com as suas tarefas aborrecidíssimas; nota-se. sinto vergonha pela minha derrota; não pelo dinheiro dele, pela minha derrota. o melhor revolucionário é um tipo pobre; eu nem sequer revolucionário sou, estou apenas cansado, mas que balde de merda me calhou! espelho, espelho na parede…» (pp. 225-226) Porque mais do que corrigir-se, importa resistir aos horrores da normalidade, da melancólica sobrevivência, do enfezado passar dos dias. Exalta-se o flanco instintivo e animal do ser, contrapondo-o aos horrores da vida doméstica e domesticável. Uma conversa tranquila é pura declaração política (mais cínica do que anarquista); Olhos como o céu retrata a guerrilha desprezível pelo “poder” na literatura; Cerveja e poetas e conversa é toda uma geração passada a papel químico. Restos de humanidade? Também os há, no rosto alegre de uma criança que apaga as quatro velas do bolo de aniversário. E na música clássica, alguns escritores, na escumalha de Los Angeles, entre os quais Bukowski se sente vivo, livre da vida:

Ofereci-me como voluntário para algumas tarefas especiais só para sair da ala, só para passear pelo sítio. Eu era parecido com o Bobby, embora não puxasse as calças para cima nem assobiasse uma versão desafinada da Cármen de Bizet. Tinha uma fixação pelo suicídio e uns surtos depressivos violentos e não suportava as multidões e, sobretudo, não suportava estar numa longa fila à espera de qualquer coisa. e é nisso que a sociedade se está a tornar: longas filas e esperas por qualquer coisa. eu tinha tentado suicidar-me com gás mas não tinha resultado. Havia, no entanto, outro problema. O meu problema era sair da cama. Eu odiava sair da cama, sempre. Costumava dizer a quem me quisesse ouvir: «As duas maiores invenções do homem são a cama e a bomba atómica; a primeira mantém-nos longe do mundo e a segunda tira-nos do mundo». As pessoas achavam que eu era maluco. Jogos infantis, é tudo o que a spessoas fazem: jogos infantis – vão da cona para o túmulo sem nunca serem tocadas pelo horror da vida.


Charles Bukowski, in Histórias de loucura normal, tradução de Vasco Gato, Editora Objectiva/Alfaguara, Outubro de 2013, 255-256.

2 comentários:

Ivo disse...

Já andava tentado a ler este livro, agora estou convencido.
"a autocrítica ultrapassa os limites da sanidade" - resta dizer se consciente ou inconscientemente. Eu quero acreditar que será conscientemente e por isso quero ler.

Anónimo disse...

tive que roubar uma frase