Safo, que a lenda arrancou dos braços do marinheiro Fáon para
os precipícios da ilha de Lefkada (Léucade), não sem antes ter deitado no seu
regaço inúmeras moçoilas, foi honrada por Platão como a décima musa. Werner
Jaeger coloca-a num capítulo de transformação da poesia grega, onde a expressão
de sentimentos subjectivos ganha terreno à descrição, elevação ou reflexão da
vida comunitária. Não obstante, a intimidade nos gregos não pode ser pensada
fora da pólis. Faz mais sentido pensá-la no contexto de um novo pensamento
sobre o sentido da vida humana na terra, um pensamento de pendor hedonista
fundamentado na importância da sensualidade. Talvez seja mais fácil compreender
esse contexto comparando-o com o carpe diem romano. Vale a pena citar o “rancor”
de Arquíloco, tomando como referência a Paidéia, a este propósito, mais que não
seja pela actualidade das formulações clássicas:
Apregoavam os poetas, desde Homero, que a polis guardava
na lembrança e honrava, mesmo depois da morte, o nome dos que a tinham servido,
como recompensa certa pelo serviço prestado. Mas, na verdade, ninguém, depois
de morto, é honrado ou famoso na memória dos seus concidadãos; toda a vida nos
empenhamos por alcançar o favor dos vivos; os mortos, porém, coitados deles!
Outro fragmento mostra bem o que isto quer dizer. O poeta medita sobre a baixa
maledicência que até nos lugares mais recônditos persegue a quem já não é
preciso temer. É vergonhoso injuriar os mortos. Quem penetra assim na
psicologia da fama e conhece a baixeza da grande massa perde todo o respeito à
voz comum.
Portanto, a voz comum, que hoje enche tanto de fama como
de inveja efémeras estrelas, prestando-lhes a honra do cachet facilitador da boa
vida, nunca foi boa conselheira. Há nisto um enorme paradoxo, se o hedonismo
cingirmos a boa cama, estômago satisfeito, música e dança. Hoje o ritmo
parece diferente, mantendo-se apenas a doença, a velhice e a morte como
princípios inalterados da vida humana. Daí que o hedonismo de Safo seja mais
actual do que qualquer outro, pois eleva acima do simples “gozo da vida” a
beleza do amor:
15 A maçã no ramo mais alto (fr. 105 a PLF)
Sozinha, a doce maçã enrubesce no alto ramo,
alto, altíssimo, pois esqueceram-na os apanhadores da
maçã.
Na verdade, não a esqueceram: não conseguiram foi lá
chegar.
Lembro-me disto a propósito de um vox populi sobre votos
para o ano novo. Entre tradicionais votos de saúde, paz, dinheiro, alegria, lá
se lembrou um artista de rua, com sotaque do leste, da palavra amor. Dizia ele: "o amor é o mais importante, tens o amor e tens tudo". Citando Jaeger, «A
poesia de amor masculina nunca atingiu na Grécia a profundidade espiritual da
lírica de Safo. (…) É como porta-voz do amor que Safo entra no reino da poesia,
antes reservado aos homens». Leia-se:
4 Da beleza (fr. 16 PLF)
Uns dizem que é uma hoste de cavalaria, outros de
infantaria;
outros dizem se ruma frota de naus, na terra negra,
a coisa mais bela: mas eu digo ser aquilo
que se ama.
(…)
Traduzido de outra forma: Alguns dizem que o que há de
mais belo na Terra é um esquadrão de cavalaria; outros, um exército de
guerreiros apeados; outros ainda, uma esquadra de navios; mas o mais belo é ser
amado por quem o coração suspira. A beleza vê-se aqui disputada pela guerra e
pelo amor, pendendo para o segundo nas batalhas de Safo. Honra seja feita ao
vencedor, lembrando que por detrás desta lírica vive, afinal, um pensamento
político que não só não impede a expressão individual do sentimento como o
torna lei. Possa assim ser interpretado o mais belo dos fragmentos:
17 Renúncia (fr. 121 PLF)
Se és meu amigo,
vai para a cama de uma mulher mais nova.
Eu não suportaria ser a mulher
mais velha numa relação.
Pode algum homem conceber política mais doce e bela nas
palavras de uma mulher?
Referências: Poesia Grega de Álcman a Teócrito,
organização, tradução e notas de Frederico Lourenço, Edições Cotovia, Maio de
2006; Paidéia – A Formação do Homem Grego, de Werner Jaeger, tradução de Artur
M. Parreira, Martins Fontes/Editora Universidade de Brasília, 2.ª edição
brasileira, Janeiro de 1989.
3 comentários:
Nem vou comentar a última parte!:P
Ora essa, a parte melhor é sempre a das referências bibliográficas.
Não era essa parte:)
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