sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

MAÇÃ DE SAFO


Safo, que a lenda arrancou dos braços do marinheiro Fáon para os precipícios da ilha de Lefkada (Léucade), não sem antes ter deitado no seu regaço inúmeras moçoilas, foi honrada por Platão como a décima musa. Werner Jaeger coloca-a num capítulo de transformação da poesia grega, onde a expressão de sentimentos subjectivos ganha terreno à descrição, elevação ou reflexão da vida comunitária. Não obstante, a intimidade nos gregos não pode ser pensada fora da pólis. Faz mais sentido pensá-la no contexto de um novo pensamento sobre o sentido da vida humana na terra, um pensamento de pendor hedonista fundamentado na importância da sensualidade. Talvez seja mais fácil compreender esse contexto comparando-o com o carpe diem romano. Vale a pena citar o “rancor” de Arquíloco, tomando como referência a Paidéia, a este propósito, mais que não seja pela actualidade das formulações clássicas:

Apregoavam os poetas, desde Homero, que a polis guardava na lembrança e honrava, mesmo depois da morte, o nome dos que a tinham servido, como recompensa certa pelo serviço prestado. Mas, na verdade, ninguém, depois de morto, é honrado ou famoso na memória dos seus concidadãos; toda a vida nos empenhamos por alcançar o favor dos vivos; os mortos, porém, coitados deles! Outro fragmento mostra bem o que isto quer dizer. O poeta medita sobre a baixa maledicência que até nos lugares mais recônditos persegue a quem já não é preciso temer. É vergonhoso injuriar os mortos. Quem penetra assim na psicologia da fama e conhece a baixeza da grande massa perde todo o respeito à voz comum.

Portanto, a voz comum, que hoje enche tanto de fama como de inveja efémeras estrelas, prestando-lhes a honra do cachet facilitador da boa vida, nunca foi boa conselheira. Há nisto um enorme paradoxo, se o hedonismo cingirmos a boa cama, estômago satisfeito, música e dança. Hoje o ritmo parece diferente, mantendo-se apenas a doença, a velhice e a morte como princípios inalterados da vida humana. Daí que o hedonismo de Safo seja mais actual do que qualquer outro, pois eleva acima do simples “gozo da vida” a beleza do amor:

15 A maçã no ramo mais alto (fr. 105 a PLF)

Sozinha, a doce maçã enrubesce no alto ramo,
alto, altíssimo, pois esqueceram-na os apanhadores da maçã.
Na verdade, não a esqueceram: não conseguiram foi lá chegar.

Lembro-me disto a propósito de um vox populi sobre votos para o ano novo. Entre tradicionais votos de saúde, paz, dinheiro, alegria, lá se lembrou um artista de rua, com sotaque do leste, da palavra amor. Dizia ele: "o amor é o mais importante, tens o amor e tens tudo". Citando Jaeger, «A poesia de amor masculina nunca atingiu na Grécia a profundidade espiritual da lírica de Safo. (…) É como porta-voz do amor que Safo entra no reino da poesia, antes reservado aos homens». Leia-se:

4 Da beleza (fr. 16 PLF)

Uns dizem que é uma hoste de cavalaria, outros de infantaria;
outros dizem se ruma frota de naus, na terra negra,
a coisa mais bela: mas eu digo ser aquilo
que se ama.

(…)

Traduzido de outra forma: Alguns dizem que o que há de mais belo na Terra é um esquadrão de cavalaria; outros, um exército de guerreiros apeados; outros ainda, uma esquadra de navios; mas o mais belo é ser amado por quem o coração suspira. A beleza vê-se aqui disputada pela guerra e pelo amor, pendendo para o segundo nas batalhas de Safo. Honra seja feita ao vencedor, lembrando que por detrás desta lírica vive, afinal, um pensamento político que não só não impede a expressão individual do sentimento como o torna lei. Possa assim ser interpretado o mais belo dos fragmentos:

17 Renúncia (fr. 121 PLF)

Se és meu amigo,
vai para a cama de uma mulher mais nova.
Eu não suportaria ser a mulher
mais velha numa relação.

Pode algum homem conceber política mais doce e bela nas palavras de uma mulher?

Referências: Poesia Grega de Álcman a Teócrito, organização, tradução e notas de Frederico Lourenço, Edições Cotovia, Maio de 2006; Paidéia – A Formação do Homem Grego, de Werner Jaeger, tradução de Artur M. Parreira, Martins Fontes/Editora Universidade de Brasília, 2.ª edição brasileira, Janeiro de 1989.

3 comentários:

je suis...noir disse...

Nem vou comentar a última parte!:P

hmbf disse...

Ora essa, a parte melhor é sempre a das referências bibliográficas.

je suis...noir disse...

Não era essa parte:)