terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

CRIMES SENSÍVEIS

Quando há dias ouvi a notícia de dois amigos que se envolveram à pancada por causa de uma discussão sobre os méritos da poesia e da prosa, ocorreram-me algumas memórias. Passou-se na Rússia de Tolstói, tendo um dos "pelejadores" acabado morto. Trespassado pela faca do adversário, o adepto da prosa não resistiu à fúria do adepto da poesia. Há não muito, uma discussão sobre a Crítica da Razão Pura também acabou no hospital. O mais expectável seria ter acabado num hospital psiquiátrico, mas não. A discussão deu azo a disparos. Ninguém morreu, provavelmente porque no decorrer da polémica alguém ter-se-á lembrado do imperativo categórico kantiano. Homens há capazes das acções mais violentas pelos motivos mais insólitos. Em tempos, o escritor Max Aub aproveitou o exílio mexicano para reunir uma recolha de confissões de crimes a que chamou exemplares. Um exemplo aqui. Afirma Aub no prefácio: «Um Siciliano, um Albanês, matam pelas mesmas razões que um Dinamarquês, um Norueguês ou um Guatemalteco». Não discuto o objectivismo cultural nestas matérias. Porém, julgo que matar por paixão à poesia retira ao crime gravidade. Oferece-lhe até uma certa prosa. Nisto de crimes exemplares, voluntários ou acidentais (parece um contra-senso, embora nem sempre o seja), não há como aqueles praticados com sensibilidade literária. Alfred Jarry, que apreciava andar de bicicleta e beber absinto (não necessariamente por esta ordem), disparou «dois tiros contra um artista por não gostar da cara dele». Foi durante um almoço em casa de Maurice Raynal. Do mesmo Jarry contam-se outras inúmeras histórias congéneres. Cervantes terá sido chulo das irmãs, Genet era criminoso confesso, Rimbaud foi traficante de armas e de escravos, Sade foi Marquês. Mas a cereja no topo do bolo, passe a expressão, acontece com William S. Burroughs em Setembro de 1951. Emigrado com a mulher no México para fugirem de problemas relacionados com o cultivo de marijuana no Texas, Burroughs resolveu brincar a Wilhelm Tell com um revólver na mão. Pediu a Joan Vollmer que colocasse um copo de vidro na cabeça e disparou. Falhou o alvo. Vollmer caiu morta no chão. O filho dos dois faleceu aos 32 anos encharcado de drogas e de álcool. Boas vidas. 

2 comentários:

Guerra disse...

Na minha terra, um aluno da primária (9-10 anos), enterrou um lápis na cabeça do companheiro por este ter respondido correctamente a uma pergunto sobre rios que que o agressor tinha errado. Não consta que tivesse bebido ou fumado alguma coisa
Mari João Pires foi vítima da ira governamental e também popular (envenenaram-lhe o riacho que passava na propriedade dela, por exemplo), por querer dar alguma cultura musical a uns putos. Maria João Pires renunciou à nacionalidade portuguesa.
Na Rússia, essas discussões "filosóficas" são fruto, acho eu, da vodca em excesso. Tanto faz ser Kant, poesia-prosa como Zenith, Spartak ou couve-for/couve troncha.

hmbf disse...

Este Governo é estúpido, não tem "sensibilidade criminosa". Comete crimes com a brutalidade dos brutos. Também não se drogam, são mesmo assim. É da natureza daquela gente.