É fácil um homem deprimir-se com a actualidade, ficando
apreensivo relativamente ao futuro. Também não é difícil deprimir-se com o
passado, aceitando com espanto a evidência histórica de, apesar de tudo, não
estarmos necessariamente piores do que já estivemos. O mundo é complexo,
assimétrico, aterrorizador. E ameaça-nos constantemente a salubridade
intelectual. Ficam os nomes a servir de exemplo. Túpac Amaru, herói peruano,
deu origem a um movimento revolucionário com o seu nome. Viveu e morreu no
século XVI, mas dois séculos depois um tal de José Gabriel Condorcanqui Noguera
autoproclamou-se Túpac Amaru II e partiu para uma guerrilha de oposição à Coroa
espanhola. Reivindicava o fim do trabalho escravo, distribuição das terras pela
população indígena, justiça social. Traído por dois dos seus oficiais, foi obrigado
a assistir à execução da família antes de ser torturado até à morte. O corpo,
esquartejado, foi espalhado por diversas partes do território que lhe era fiel.
Já no início do século XX, Augusto César Sandino insurgiu-se contra o domínio
americano na Nicarágua. Rotulado de “outlaw” pelos sheriffs do Norte, resistiu
com uma guerrilha onde reivindicava o impossível: a terra a quem a trabalha.
Traído por compatriotas com quem tentava negociar o fim da guerrilha, acabou
assassinado, segundo o executor, a mando do embaixador norte-americano. Da sua
luta nasceu o sandinismo, ideologia mãe dos exércitos de camponeses rebeldes
que, na origem, combatiam a política latifundiária. Nas terras que hoje se
conhecem como Uruguai, José Artigas (1764-1850) combateu espanhóis e
portugueses em defesa de uma reforma agrária que atraiu índios, escravos,
gaúchos, camponeses feridos na sua dignidade. Terra livre, homens livres, era o
lema dos perigosos revolucionários: «se decretaba la expropiación y el reparto
de las tierras de los malos europeos y peores americanos emigrados a raíz de la
revolución y no indultados por ella». Artigas pretendia repartir terras de
acordo com o princípio de que os mais infelizes seriam os mais privilegiados,
estando os índios no topo dos beneficiários desta reforma utópica. Sobrevive na
História latino-americana como uma figura ambígua e controversa. Depois há
Zapata, o carismático e quase mitológico Emiliano Zapata. O que pretendia este
Mexicano insubordinado? Ele e Pancho Villa queriam destruir para sempre o
monopólio da terra, realizando um Estado que garantisse o direito de cada homem
a ter um pedaço de terra que pudesse servir à sua subsistência. O Exército de
Libertação do Sul caiu com o desaparecimento do seu líder, traído e cravejado
de balas que, no entanto, não apagaram o mito. Todos estes homens tinham boas
intenções. As suas acções e, por consequências, as lutas que travaram podem ser
consideradas manifestos por uma maior justiça social. Traídos, assassinados,
restam como exemplos. Haverá quem os admire, haverá quem os despreze, haverá
quem discuta os méritos e os vícios do legado que outorgaram à marcha da
humanidade. Certo é que lutaram. Lutaram com o que tinham à mão, oferecendo o
peito às balas, por causas que nos parecem justíssimas. Causas semelhantes continuam
a inspirar imensas pessoas no mundo. As formas de luta são outras. Na Europa,
luta-se nas redes sociais. As redes sociais estão cheias de misantropos e de tipos
anti-sociais. Em África luta-se à catanada, luta-se todos os dias por uma
passagem para a Europa ou por uma semente que mate a fome. No Médio Oriente
luta-se à pedrada, enquanto os drones norte-americanos garantem o sucesso
meticuloso de intervenções militares civilizadas. Os jovens que amam as praxes
não querem saber disto para nada, preferem lamber as pedras da calçada a estremecer
com preocupações de justiça social. O mundo é assimétrico, terrivelmente assimétrico.
Assange e Snowden talvez sejam o que hoje mais se aproxima de Pancho Villa e
Emiliano Zapata. Quando as sementes estiverem todas patenteadas, poderemos
descansar em paz. A Monsanto encarregar-se-á de levar a felicidade ao mundo, matando
a fome dos activistas do Greenpeace. E o Al Gore escreverá mais um livro, que o
Dr. Soares se encarregará de citar, a Angelina adoptará mais uma pobre criança,
o Papa Francisco aproveitará a ocasião para lhe telefonar agradecendo o bem que
tem feito pelo mundo e os jornalistas darão notícia destes e de outros
acontecimentos, como o de um novo recorde batido por um surfista australiano
nas ondas da Nazaré… É fácil um homem deprimir-se com a actualidade, também não
é difícil deprimir-se com o passado.
1 comentário:
Não concordo com alguns pormenores e com um pormaior (isso do Emiliano Assange e do Pancho Snowden). Para além disso, que não interessa, bela pedrada, bela catanada, pela espingardada nesses lambedores de pedras da calçada
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