terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

EU AMO AS PRAXES

É fácil um homem deprimir-se com a actualidade, ficando apreensivo relativamente ao futuro. Também não é difícil deprimir-se com o passado, aceitando com espanto a evidência histórica de, apesar de tudo, não estarmos necessariamente piores do que já estivemos. O mundo é complexo, assimétrico, aterrorizador. E ameaça-nos constantemente a salubridade intelectual. Ficam os nomes a servir de exemplo. Túpac Amaru, herói peruano, deu origem a um movimento revolucionário com o seu nome. Viveu e morreu no século XVI, mas dois séculos depois um tal de José Gabriel Condorcanqui Noguera autoproclamou-se Túpac Amaru II e partiu para uma guerrilha de oposição à Coroa espanhola. Reivindicava o fim do trabalho escravo, distribuição das terras pela população indígena, justiça social. Traído por dois dos seus oficiais, foi obrigado a assistir à execução da família antes de ser torturado até à morte. O corpo, esquartejado, foi espalhado por diversas partes do território que lhe era fiel. Já no início do século XX, Augusto César Sandino insurgiu-se contra o domínio americano na Nicarágua. Rotulado de “outlaw” pelos sheriffs do Norte, resistiu com uma guerrilha onde reivindicava o impossível: a terra a quem a trabalha. Traído por compatriotas com quem tentava negociar o fim da guerrilha, acabou assassinado, segundo o executor, a mando do embaixador norte-americano. Da sua luta nasceu o sandinismo, ideologia mãe dos exércitos de camponeses rebeldes que, na origem, combatiam a política latifundiária. Nas terras que hoje se conhecem como Uruguai, José Artigas (1764-1850) combateu espanhóis e portugueses em defesa de uma reforma agrária que atraiu índios, escravos, gaúchos, camponeses feridos na sua dignidade. Terra livre, homens livres, era o lema dos perigosos revolucionários: «se decretaba la expropiación y el reparto de las tierras de los malos europeos y peores americanos emigrados a raíz de la revolución y no indultados por ella». Artigas pretendia repartir terras de acordo com o princípio de que os mais infelizes seriam os mais privilegiados, estando os índios no topo dos beneficiários desta reforma utópica. Sobrevive na História latino-americana como uma figura ambígua e controversa. Depois há Zapata, o carismático e quase mitológico Emiliano Zapata. O que pretendia este Mexicano insubordinado? Ele e Pancho Villa queriam destruir para sempre o monopólio da terra, realizando um Estado que garantisse o direito de cada homem a ter um pedaço de terra que pudesse servir à sua subsistência. O Exército de Libertação do Sul caiu com o desaparecimento do seu líder, traído e cravejado de balas que, no entanto, não apagaram o mito. Todos estes homens tinham boas intenções. As suas acções e, por consequências, as lutas que travaram podem ser consideradas manifestos por uma maior justiça social. Traídos, assassinados, restam como exemplos. Haverá quem os admire, haverá quem os despreze, haverá quem discuta os méritos e os vícios do legado que outorgaram à marcha da humanidade. Certo é que lutaram. Lutaram com o que tinham à mão, oferecendo o peito às balas, por causas que nos parecem justíssimas. Causas semelhantes continuam a inspirar imensas pessoas no mundo. As formas de luta são outras. Na Europa, luta-se nas redes sociais. As redes sociais estão cheias de misantropos e de tipos anti-sociais. Em África luta-se à catanada, luta-se todos os dias por uma passagem para a Europa ou por uma semente que mate a fome. No Médio Oriente luta-se à pedrada, enquanto os drones norte-americanos garantem o sucesso meticuloso de intervenções militares civilizadas. Os jovens que amam as praxes não querem saber disto para nada, preferem lamber as pedras da calçada a estremecer com preocupações de justiça social. O mundo é assimétrico, terrivelmente assimétrico. Assange e Snowden talvez sejam o que hoje mais se aproxima de Pancho Villa e Emiliano Zapata. Quando as sementes estiverem todas patenteadas, poderemos descansar em paz. A Monsanto encarregar-se-á de levar a felicidade ao mundo, matando a fome dos activistas do Greenpeace. E o Al Gore escreverá mais um livro, que o Dr. Soares se encarregará de citar, a Angelina adoptará mais uma pobre criança, o Papa Francisco aproveitará a ocasião para lhe telefonar agradecendo o bem que tem feito pelo mundo e os jornalistas darão notícia destes e de outros acontecimentos, como o de um novo recorde batido por um surfista australiano nas ondas da Nazaré… É fácil um homem deprimir-se com a actualidade, também não é difícil deprimir-se com o passado.

1 comentário:

jpt disse...

Não concordo com alguns pormenores e com um pormaior (isso do Emiliano Assange e do Pancho Snowden). Para além disso, que não interessa, bela pedrada, bela catanada, pela espingardada nesses lambedores de pedras da calçada