sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

POEMA DO SENHOR (fragmento)


DÉCIMA SEXTA LIÇÃO

O Senhor Krixna disse:

1. - «Um coração puro e nenhum sinal de medo,
persistência no Yôga deste conhecimento,
autodomínio, caridade e sacrifício,
estudo dos Vedas mais ascese e rectidão,

2. não-violência, nem cólera, veracidade,
calma, renúncia e jamais calúnia,
compaixão pelos seres, ausência de desejos,
gentileza, modéstia e discrição,

3. energia, paciência, firmeza, higiene,
isenção de malícia e d'orgulho excessivo,
eis os dotes daquele que nasceu e medrou
pró destino divino, ó Grão Filho de Bhárata!

4. Arrogância, vaidade, hipocrisia,
ira, palavras brutas e também ignorância,
eis os dotes daquele que nasceu e medrou
com um destino assúrico, ó Filho de Prithá!

5. O destino divino dá libertação,
o assúrico só dá dependência, dizem.
Mas, não te aflijas, não, ó Filho de Pandu,
que tu nasceste, sim, pró divino destino.

6. Na emissão dos seres do mundo, há duas classes:
as divina e assúrica; já te ensinei
a que é divina, em pormenor; agora, escuta,
ó Filho de Prithá, em que consiste a assúrica.

7. Os humanos assúricos não sabem
quando devem agir ou não agir.
Higiene não têm, nem boa conduta
e neles não se encontra nada de verdade.

8. Dizem tais indivíduos vãos que o universo
sem Deus existe, e sem leis transcendentais,
e só originado pelo mero acaso
e por mais nada que não seja só desejo.

9. Firmados nesta concepção, perdidos homens
de mentes tão perdidas, débeis intelectos,
autores de más acções, surgem como inimigos,
vindos pra destruir este universo inteiro.

10. À mercê do desejo intenso, insaciável,
cheios d'hipocrisia, orgulho e mais luxúria,
com noções falsas adquiridas n'ilusão, 
eles só actuam, cegos, com impuros votos;

11. e sempre possuídos por imensa ânsia,
que somente tem fim n'hora da morte,
seu supremo objectivo é gozar os desejos
co'a convicção de que não há mais nada;

12. presos em armadilhas-mil de vãs esp'ranças,
votados à paixão do desejo e da cólera,
eles tentam, por injustos meios, conseguir
riqueza só gratificante dos desejos.

13. - 'Isto foi, para mim, o lucro d'hoje:
já posso obter aquilo porque corre a mente;
e isto e mais ainda esta riqueza,
tudo isto será, por certo, meu também;

14. 'este inimigo, eis que foi morto por mim,
e os outros inimigos eu hei-de eliminar:
eu é que sou senhor e sou o gozador
e sou bem sucedido, feliz, poderoso;

15. 'sou rico e também de nobre nascimento.
Há alguém que se possa comparar comigo?
Dádivas, sacrifícios farei: estou contente.'
Falam assim os iludidos pla ignorância.

16. Por muitos pensamentos desviados,
envoltos numa rede d'ilusão,
do gozo dos desejos, prisioneiros,
hão-de cair no mais puro inferno.

17. Convencidos de si, rebeldes, orgulhosos,
avaros de riquezas, fazem sacrifícios 
rituais, só de nome e por hipocrisia,
sem atender às prescrições dos santos Vedas.

18. Votados ao egoísmo e à insolência,
ao poder, ao desejo e mais à cólera,
tais invejosos só a Mim odeiam
nos próprios corpos e nos corpos d'outros.

19. Homens cruéis, envilecidos, tenebrosos
e viciosos, são por Mim lançados
à incessante roda das transmigrações
e para sempre nas assúricas matrizes.

20. Havendo entrado nas matrizes dos assuras,
esses, a Mim, jamais Me alcançam: iludidos,
de nascimento em nascimento, encaminham-se,
ó Filho de Kuntí, pra fim 'inda mais baixo.

21. A porta do inferno, que destrói
átma, é tripla: cólera, desejo
mais avidez. Deve-se, já, portanto,
abandonar tal tríade nociva.

22. Liberto destas três portas tamásicas,
ó Filho de Kuntí, um homem faz
o que é melhor plo átma, e, então,
por certo, vai direito ao supremo objectivo.

23. Quem age só segundo o seu desejo,
passando em branco as regras da Escritura,
não atinge jamais a perfeição,
tão-pouco f'licidade ou supremo objectivo.

24. Guia, portanto, pla Escritura, os teus passos,
sabendo como actuar ou como não actuar;
d'acordo com a ordem dada na Escritura
é que tu deverás proceder neste mundo.»

Aqui termina a Décima Sexta Lição, intitulada:
O Yôga da Distinção entre o Destino Divino e o Assúrico,
Diálogo entre Krixna e Ardjuna,
da Santa Upanixad do Poema do Senhor.

Vyassa, in Poema do Senhor / Bhagavad-Guitá, trad. António Barahona, Relógio D'Água, Novembro de 1996, pp. 201-207.

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