Apesar de ter sido escrito por Samuel Fuller (1912-1997),
Forty Guns/Quarenta Cavaleiros (1957) ecoa, a espaços, ambientes e personagens
que conhecemos de westerns anteriores. Tall in the Saddle (1944) e The Furies
(1950) são as referências mais evidentes, tendo Fuller requisitado para o papel
principal a mesma actriz que brilhou no filme de Anthony Mann. Barbara Stanwyck
encarna agora a personagem de Jessica Drummond, proprietária das vastas terras
do rancho Dragoon em Cochise County. A figura imponente desta mulher seduz-nos
desde a cena de abertura, com Jessica vestida de preto, montada no seu cavalo branco,
chefiando um pelotão composto por quarenta pistoleiros. É uma cena de tal forma
improvável que todo o filme parece ali caber. No primeiro plano, geral, vemos
apenas uma carroça a atravessar uma imensa paisagem, sendo o movimento acompanhado
pela deslocação da sombra de uma nuvem sobre a terra. O cinema de Fuller é de sombras, zonas obscuras e dúbias da mente penetradas por um olhar que
não enjeita a contradição nem cede à tentação de procurar explicar os mistérios
da alma humana. Na carroça vêm os irmãos Bonnell. Griff, o mais velho (Barry
Sullivan), Chico, o mais novo (Robert Dix), e Wes (Gene Barry). Param, tão espantados
como nós com o que vêem à sua frente. Jessica e os seus 40 cavaleiros passam
indiferentes à carroça estacionada no meio do trilho, Griff tenta controlar os
cavalos manipulando as rédeas, Wes e Chico protegem-se da poeira levantada pelo
batalhão de Jessica Drummond. Quando a poeira assenta, olham para o “tornado”
que por eles acabou de passar com um misto de admiração, encanto e alvoroço. Pelo menos é isso que os seus rostos transmitem. A partir daqui, o
filme desenrola-se na perspectiva de uma aproximação entre Jessica e Griff. Poderá
aquilo que os opõe vir a aproximá-los? Terá a fera feminina, aparentemente indómita,
alguém à sua altura para a fazer dobrar? Estas personagens de coração amuralhado
são idealizações sem tempo nem geografia, perseguem-nos para qualquer lugar. Scorsese
diz que o filme extravasa as fronteiras do western, Bénard da Costa chama-lhe
tragédia. Ora, o western é isto mesmo: o lugar onde a tragédia não conhece
fronteiras. Samuel Fuller, cujo primeiro filme foi I Shot Jesse James (1949), sabe isso como
nenhum outro realizador. À sua maneira, ele próprio experienciou situações
limite que só a linguagem poética, neste caso cinematográfica, pode exprimir. A
possibilidade da poesia depois do Holocausto está errada. O que nos deve fazer
pensar é como foi possível o Holocausto depois da poesia. Fuller oferece-nos
pistas para o pensamento. Mostra-nos um simples duelo a partir de dez ângulos
diferentes, sem no entanto nos oferecer de mão beijada o que virá a revelar-se
essencial no desfecho da contenda: o homem escondido por detrás do nosso olhar.
Aquilo que não conseguimos ver de imediato, o que os nossos olhos não alcançam é o acaso que trai as expectativas e determina a realidade. Estes jogos influenciam
igualmente a relação entre Jessica Drummond e Griff Bonnell. Entre ambos,
assistiremos a alguns diálogos inesquecíveis de um erotismo subtil onde a
sedução se pratica invariavelmente no sentido de saber quem exerce mais poder
sobre quem. Mas apenas quando ambos se confessam um ao outro - ela numa choça
onde se protegem de uma tempestade, espécie de santuário familiar repleto de
memórias, ele ao som de um piano melancólico -, ficamos a perceber que um deles
poderá vir a ceder. O amor faz das suas. No final, Jessica já não está rodeada
dos seus 40 homens nem sequer monta um cavalo branco. Veste um vestido claro e
corre na direcção de Bonnell, parte com ele para futuro incógnito. Resquícios
de misoginia não são para aqui chamados. Que tenha sido ela a ceder e não ele
é, para o efeito, irrelevante. Normalmente até acontece o contrário. Com
consequências nefastas, claro está.
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