quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

UIVO (fragmento)


Para Carl Solomon

I

Vi os mais inteligentes da minha geração destruídos pela loucura, esfomeados histéricos nus,
arrastarem-se de madrugada pelos bairros negros à procura de uma dose danada,
hipsters com cabeças de anjos a arder pela antiga ligação celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da noite,
que pobreza e farrapos e pedrados e de olhos encovados andaram até altas horas a fumar na escuridão sobrenatural de habitações degradadas flutuando sobre os cumes das cidades a contemplar jazz,
que exibiram os miolos ao Céu debaixo do metro de superfície e viram anjos maometanos cambalearem pelos telhados de bairros sociais iluminados,
que percorreram universidades de olhos gélidos radiantes com alucinações trágicas de Arkansas iluminadas por Blake rodeados pelos estudantes da guerra,
que foram expulsos das academias por doidos & publicaram odes obscenas sobre as janelas do crânio,
que se aninharam em cuecas dentro de quartos por barbear, incendiando dinheiro em cestos de papéis e escutando o Terror pela parede,
que foram presos de barbas púbicas de regresso por Laredo com um cinto de marijuana destinado a Nova Iorque,
que comeram fogo em hotéis de tinta ou beberam diluente no Beco do Paraíso, morte, ou que noite após noite levaram o lombo ao purgatório
com sonhos, com drogas, com pesadelos acordados, álcool e caralho e tomatos sem fim,
as cabeças repletas de incomparáveis ruas cegas feitas de nuvem e relâmpago vibrantes, aos pinotes rumo aos pólos de Paterson Canadá, alumiando pelo caminho todo o imóvel mundo do Tempo,
as solidades peiotianas de salões, auroras nos cemitérios de árvores verde-jardim, embriaguez de vinho sobre os telhados, o pisca-pisca das viagens alucinantes por semáforos-néon em vilas com fachadas de lojas, vibrações solares e lunares e arbóreas no meio dos estrondosos crepúsculos invernais de Brooklyn, urros cinzados e luz mental majestosa e gentil,
que se acorrentaram ao metro para a viagem infindável desde o Battery ao Bronx sagrado sob o efeito de benzedrina até que o ruído das rodas e crianças os atirou abaixo e lhes deu cabo da boca e lhes moeu o cérebro, despojando-os de brilho sob a lúgubre luz do Zoo,
que se afundaram toda a noite na luz submarina do Bickford's e flutuaram para longe e aguentaram a tarde de cerveja morta no desolado Fugazzi's, enquanto a desgraça crepitava da jukebox de hidrogénio,
que falaram setenta horas sem parar desde o parque até casa até ao bar até Bellevue até ao museu até à Ponte de Brooklyn,
um batalhão perdido de conversadores platónicos lançando-se pela varanda abaixo de escadas-de-salvamento de peitoris do Empire State de dentro da lua,
a tagarelar a gritar a vomitar a sussurrar factos e memórias e anedotas e choques de hospitais e cadeiras e guerras,
intelectos inteiros expelidos em reminiscências totais durante sete dias e noites com olhos brilhantes, e carne para a Sinagoga lançada sobre o passeio,
que desvaneceram para Zen-nenhures Nova Jersey largando um rasto de postais ilustrados ambíguos da Câmara de Atlantic City,
sofrendo de suores orientais e moeduras ósseas tangitanas e enxaquecas da China com ressaca de junk no sombrio quarto mobilado em Newark,
que à meia-noite deram voltas e meias voltas no recinto ferroviário magicando para onde haviam de ir, e foram, sem deixar para trás nem um coração partido,
que acenderam cigarros em vagões vagões vagões achincalhando pela neve fora rumo a quintas saudosas na noite anciã,
que estudaram Plotino Poe São João da Cruz telepatia e cabala-bop porque no Kansas o cosmos vibrara instintivamente aos seus pés,
que percorreram sozinhos as ruas do Idaho em busca de anjos índios visionários que eram anjos indianos visionários,
que julgavam estarem apenas loucos quando Baltimore luziu em êxtase sobrenatural,
que saltaram para dentro de limusinas com o chinoca de Oklahoma impulsionados pela chuva invernal que caía era meia-noite à luz dos candeeiros de uma pequena cidade,
que vaguearam por Houston saudosos e famintos à procura de jazz ou sexo ou sopa, e que seguiram o Espanhol brilhante para conversar sobre a América e a Eternidade, uma tarefa inútil, e por isso embarcaram para África,
que desapareceram para dentro dos vulcões no México sem deixar nada para trás a não ser a sombra de ganga e a lava e a cinza da poesia semeada em lareira Chicago,
que reapareceram na costa Oeste a investigar o FBI com barbas e calções e grandes olhos pacifistas sensuais realçados por pele escura a entregar folhetos incompreensíveis,
que queimaram os braços com pontas de cigarros protestando a névoa narcótica tabagista do Capitalismo,
que distribuíram panfletos Supercomunistas em Union Square a chorarem e a despirem-se enquanto as sirenes de Los Alamos os guinchava abaixo, e guinchava abaixo o Muro, e o ferry de Staten Island também guinchava,
que se foram abaixo e choraram em ginásios, brancos e nus e a tremer ante a maquinaria de outros esqueletos,
que morderam detectives no pescoço e guincharam de prazer em carros de polícia por não terem cometido crime algum a não ser a sua singular pederastia e intoxicação selvagem e fulminante,
que uivaram de joelhos no metro e foram arrastados de cima do telhado, acenando com genitais e manuscritos,
que se deixaram enrabar por motoqueiros religiosos, e que gritaram de prazer,
que chuparam e foram chupados por esses serafins humanos, os marinheiros, carícias de amor atlântico e caraíba,
que pinocaram à noite de manhã no meio de roseiras e na relva de parques públicos e cemitérios disseminando o seu sémen livremente a quem quer que fosse, fosse quem fosse que se viesse,
que soluçaram até à exaustão tentando dar risadinhas mas que acabaram em lágrimas atrás de uma divisória num Banho Turco quando o anjo louco e nu apareceu para os furar com uma espada,
que foram obrigados a entregar os seus meninos-de-amor às três megeras velhas do destino a megera zarolha do dólar heterossexual a megera zarolha que pestanejava dentro do útero e a megera zarolha que nada faz senão abancar o cu e tesourar os fios intelectuais dourados no tear do artífice,
que copularam extasiados e insaciáveis com uma garrafa de cerveja uma namorada um maço de cigarros uma vela e caíram da cama, e continuaram sobre o chão e pelo corredor fora e acabaram desmaiados na parede com  uma visão de cona e de esperma derradeiros a iludir o último jacto de consciência,
que provaram as pássaras de um milhão de catraias que tremiam ao pôr do sol e mesmo tendo os olhos vermelhos de manhã estavam prontos para provar a pássara do nascer do sol, exibindo as nádegas em celeiros e no lago, nus,
que andaram na má vida no Colorado dentro de uma miríade de carros nocturnos roubados, N. C., herói secreto destes poemas, homem-caralho e Adónis de Denver - bem-haja a memória das suas inúmeras ponteiradas com tipas em recintos vazios e nas traseiras de restaurantes, filas de cadeiras periclitantes em cinemas, no cimo de montanhas em grutas ou com empregadas de mesa macilentas em íntimos e solitários levantamentos de saiotes à beira estrada & especialmente dos solipsismos secretos em WCs de estações de serviço, & em becos de terras natal também,
que se extinguiram em vastos filmes sórdidos, foram transferidos em sonhos, acordaram para uma repentina Manhattan, e se levantaram do fundo de adegas ressacados com o cruel Tokay e com os horrores dos sonhos férreos da Quinta Avenida & camabalearam rumo a centros de desemprego,
que caminharam toda a noite sobre as docas de neve com os sapatos cheios de sangue à espera que uma porta no East River se abrisse para uma sala cheia de vapor e ópio,
que criaram grandes dramas suicidas em cima das falésias de apartamentos no Hudson banhados pelos projectores bélicos azuis da lua & as suas cabeças serão coroadas de louro no oblívio,
que devoraram o cordeiro estufado da imaginação ou digeriram o caranguejo sobre o fundo lamacento dos rios de Bowery,
que choraram ao verem o romance das ruas com os carrinhos cheios de cebolas e música foleira,
que se sentaram dentro de caixas a respirar no escuro por baixo da ponte, e se ergueram para construir cravos nas suas águas-furtadas,
que tossiram no sexto andar de Harlem coroados de chama sob o céu tubercular rodeados de caixotes de teologia alaranjados,
que gatafunharam pela noite dentro às cambalhotas sobre encantações soberbas que na manhã amarela se transformavam em estrofes de barafunda,
que cozinharam animais podres pulmão coração pés cauda borscht & tortillas sonhando com o puro reino vegetal,
que mergulharam debaixo de camiões de carne à procura de um ovo,
que botaram relógios do telhado abaixo para votarem na Eternidade fora do Tempo, & durante a década seguinte levaram com despertadores na cabeça todos os dias,
que cortaram os pulsos três vezes sucessivamente sem sucesso, desistiram e foram forçados a abrir antiquários onde pensavam envelhecer e choraram,
que foram queimados vivos de fatos de flanela inocentes na Madison Avenue por entre disparos de versos de chumbo & a barulheira metálica dos regimentos férreos da moda & os gritos de nitroglicerina das fadas de publicidade & o gás-mostarda de editores sinistros e inteligentes, ou que foram perseguidos pelos táxis embriagados da Realidade Absoluta,
que saltaram da Ponte de Brooklyn isto de facto aconteceu e desapareceram desconhecidos e esquecidos no meio da confusão fantasmagórica das ruelas de sopa e dos carros de bombeiros em Chinatown, nem uma única cerveja de borla,
que em desespero se puseram à janela a cantar, caíram da janela do metro, saltaram para dentro do imundo Passaic, pularam para cima de negros, choraram pela estrada fora, dançaram descalços sobre copos de vinho partidos destruíram discos de jazz nostálgico alemão da Europa dos anos 30, que acabaram com o whisky e vomitaram a gemer para dentro da retrete ensanguentada, os lamentos nos ouvidos e o estrondo de apitos colossais a vapor,
que tombaram pelas estradas do passado numa viagem rumo aos relógios de corrida golgotiana da solidão prisional ou à incarnação de jazz de Birmingham,
que durante setenta e duas horas atravessaram o país de carro para descobrir se eu tinha uma visão ou se tu tinhas uma visão ou se ele tinha uma visão para descobrir a Eternidade,
que viajaram rumo a Denver, que morreram em Denver, que regressaram a Denver & esperaram em vão, que olharam por Denver & amuaram e andaram solitários em Denver e finalmente partiram para descobrir o Tempo, & agora Denver tem saudade dos seus heróis,
que caíram de joelhos em catedrais sem esperança rezando pela salvação e pela luz e pelos peitos uns dos outros, até que por instantes o cabelo da alma se iluminou,
que arrombaram a mente à espera de criminosos impossíveis de cabeças douradas e o charme da realidade nos corações que cantavam docemente os blues a Alcatraz,
que se retiraram para o México para cultivar um vício, ou para as Rochosas para se oferecerem a Buda ou para Tânger para os rapazinhos ou para o sul do Pacífico para a locomotiva negra ou Harvard para Narciso para Woodlawn para a orgia ou sepultura,
que exigiram julgamentos de sanidade acusando a rádio de hipnotismo & ficaram apenas com a sua insanidade & as suas mãos & um júri anulado,
que atiraram salada de batata a conferencistas do City College of New York sobre o Dadaísmo e se apresentaram subsequentemente na escadaria de granito do sanatório com as cabeças rapadas e um discurso suicida arlequinado, exigindo uma lobotomia instantânea,
e a quem foi dado em vez disso um vazio concreto de insulina Metrazol electricidade hidroterapia psicoterapia terapia ocupacional pingue-pongue & amnésia,
que num gesto de protesto mal-humorado derrubaram apenas uma mesa de pingue-pongue simbólica, momentaneamente catatónicos,
regressando anos mais tarde realmente carecas com  a excepção de uma peruca de sangue, e lágrimas e dedos, à visível loucura catastrófica nas enfermarias das cidades loucas do Leste,
os salões fétidos de Pilgrim State Rockland e Greystone, à pega com os ecos da alma, às cambalhotas pelos reinos-dólmen de amor nos bancos da solidão, o sonho da vida tornado pesadelo, os corpos petrificados, pesados como a lua,
com a mãe finalmente ******, e o último livro fantástico atirado da janela do bairro social, e a última porta fechada às 4 da manhã e o último telefone atirado contra a parede em resposta e a última sala mobilada esvaziada até à última peça de mobiliário mental, uma rosa feita de papel amarelo presa à cruzeta de metal pendurada no armário, e até essa imaginária, nada mais do que um pingo de alucinação cheio de esperança -
ah, Carl, se tu não estiveres a salvo eu não estou a salvo, e agora estás mesmo embrenhado na sopa de massinhas do tempo -
e que por isso correram pelas ruas geladas obcecados com um súbito flash da alquimia do uso da elipse do catálogo da métrica & da plaina vibrante,
que sonharam e incarnaram brechas no Tempo & no Espaço através de imagens justapostas, e encurralaram o arcanjo da alma entre 2 imagens visuais e juntaram os verbos elementares e puseram lado a lado o substantivo e o travessão da consciência a fervilhar com a sensação de Omnipotens Aeterna Deus
para recriar a sintaxe e a medida da pobre prosa humana e apresentar-se a ti mudos e inteligentes e a estremecer de vergonha, rejeitados mas confessando a alma, submetendo-se ao ritmo do pensamento das suas cabeças infinitas e nuas,
a batida do louco anjo e vagabundo soa ao mesmo Tempo, uma incógnita, e no entanto fixando aqui o que poderá ser dito no tempo que virá depois da morte,
e reincarnados se ergueram com as vestes fantasmagóricas do jazz à sombra da trombeta dourada da banda e sopraram o sofrimento da mente nua da América por amor num grito saxofónico eli eli lamma lamma sabacthani que estilhaçou as cidades até ao último rádio
com o coração absoluto do poema da vida talhado dos seus próprios corpos comestível daqui a mil anos.

Allen Ginsberg, in Uivo seguido de Kadish, trad. Paula Ramalho Almeida, Quasi Edições, Junho de 2002, pp. 15-24.

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