sexta-feira, 14 de março de 2014

RAFAEL


os filhos que nunca tive amei-os até crescerem
livres das dores de parto diárias
debaixo das barricadas de linho
à mesa posta deposta de sabor
e o jogo que aqueles perderam
e seu estivesse
e se eu fosse
e se eu tivesse mas vão ver quando eu tiver
e as dores que se engolem com dor
no fim o sofá vazio e a almofada verde
os amigos que riem lá por baixo
a praceta cercada
os olhos confidentes que a choram
até que o sol desiste
os cães passeiam o dono
ele agora é feliz
pisa a relva
sente um pouco de chuva
despe a mulher o cano roto e o grito
respira agora
descansa
sente agora toda a chuva
na cara nos olhos na lágrima
que se mistura se morre
é tarde no monte
desço à cidade
trago o cão ele a trela
subo
e esqueço

Nuno Moura (n. 1970), in Não saia nem entre após aviso de fecho de portas (s/d [1993?]). «Nuno Moura perturbaria necessariamente qualquer retrato geracional que se pretendesse fazer da poesia finissecular. Não viria, suponho, de fato completo, muito menos se mandado fazer em alfaiataria francófona e reluzente. Na sua obra (extensa e desigual), parece às vezes dar-se o inesperado encontro entre uma espécie de rap e a "fadistagem" de quem se apraz em sublinhar o lado mais imediatamente insólito de certos tiques e acidentes urbanos. Um caso singular, portanto, e nem sempre muito português nas suas práticas de escrita. Acrescente-se que o carácter insólito deste poeta (aqui e ali devedor tardio de Dada ou da desconexão sintáctica e semântica de Ângelo de Lima) passa sobretudo pelas imagens com que procura dizer-se. (...) Esta escrita, visivelmente, não se quer preocupar com o facto de ser datada e datável. Ao disparar, mesmo se com balas caducas ou intraduzíveis, não está a alvejar a posteridade. (...) Aos cânones serôdios e à tautologia (eventualmente jakobsoniana) de que um poema é um poema é um poema, Nuno Moura riposta que um poema pode ser qualquer coisa: "eu e tu / e, como no futebol, perdemos"». (Manuel de Freitas, in Poetas Sem Qualidades, Novembro de 2002)

Sem comentários: