quinta-feira, 10 de abril de 2014

EXEMPLOS

Por certo, o surto da grande poesia
é tão misterioso como o funcionamento dos neurónios.
João Vário, Exemplo Coevo


Uma das boas notícias que 2013 trouxe à poesia portuguesa foi a inauguração de uma colecção de poesia na editora Tinta-da-China. Livros graficamente bonitos e com distribuição alargada, tornando acessível um género geralmente acantoado no espaço cada vez mais ingovernável das livrarias portuguesas. Com coordenação de Pedro Mexia, esta colecção acaba de ver sair o seu quinto volume. Vai fazer um ano, publicou-se o primeiro. Exemplos (Tinta-da-China, Maio de 2013), de João Vário, pseudónimo de João Manuel Varela (n. 1937 - m. 2007), serviu de pórtico. E que pórtico. Poeta praticamente desconhecido dos leitores portugueses, João Manuel Varela nasceu em Cabo Verde, estudou medicina em Coimbra e Lisboa, exilou-se na Bélgica. Com vasta obra publicada no domínio científico, escolheu para pseudónimos literários os nomes de João Vário, Timóteo Tio Tiofe e G. T. Didial. Cada qual tem as suas particularidades, sendo João Vário o poeta do mundo, errante no espírito, meticuloso na escrita.

A sua obra começa a ser publicada em Coimbra, no ano de 1958, com um livro posteriormente retirado de circulação. Exemplos é monumento arquitectado com rigor, cujas fundações remontam ao ano de 1961 num caderno de poesia intitulado Êxodo, organizado com Luís Serrano e Rui Mendes. De doze volumes projectados, sairão nove: Exemplo Relativo (1968), Exemplo Dúbio (1975), Exemplo Próprio (1980), Exemplo Precário (1981), Exemplo Maior (1985), Exemple restreint (1989), Exemple irréversible (1989) e Exemplo Coevo (1998). Este volume da Tinta-da-China, organizado por Osvaldo Manuel Silvestre, deixa de fora os dois livros escritos em língua francesa, escolhe excertos dos restantes respeitando a estrutura rígida de cada um deles: uma ode inicial e a divisão do poema em três cantos. O método faz estremecer o leitor contemporâneo, porventura mais habituado a construções singelas. Mas os mestres de Vário são de outros tempos: «Pound e Eliot, nossos mestres mais ditosos» (p. 260).

A poesia de João Vário esquiva-se ao paradigma do escritor dito africano, sendo a designação de poeta cabo-verdiano demasiado estreita para alguém cuja escrita repercute constantemente ambientes urbanos e influências culturais europeias. Do texto bíblico aos clássicos, destes aos modernos, são diversas as citações ou evocações que se intrometem nos poemas, servindo de referencial a reflexões intensas sobre temas tais como a morte (logo no primeiro livro), o exílio, o tempo, a predestinação, a cidadania. Silvina Rodrigues Lopes dirá: «Em toda a poesia deste autor encontramos o mesmo imenso obstáculo à decifração — perseverança na opacidade, que se gera pela reflexão que hesita e pela atenção ao que vem, o nascer do mundo, na sua irreconhecível e demasiado próxima escrita» (Via Atlântica, Junho de 2009). No entanto, o que há de enigmático em João Vário é uma original articulação da linguagem com a experiência, numa escrita onda redemoinham imagens, se recorre à anáfora com frequência, uma escrita que retoma os seus motes diversos e neles insiste até à saturação de um impulso que vislumbra na sombra disfarce ideal para a expressão da consciência.

A recorrência a superlativos sintéticos sugere-nos uma intensidade emotiva que os poemas, altamente reflexivos, exploram a partir de problemas fundadores como aquele expresso logo nos versos iniciais: «Porque alegrarmo-nos na nossa obra / é a parte que nos cabe, / pois quem nos fará voltar / para ver o que será depois de nós?» (p. 13) Esta dúvida, que parece percorrer todos os volumes, surge posteriormente colocada de outras formas. Com um ritmo avassalador, repleto de curvas e contracurvas, João Vário disseca a experiência vivida para, a partir de um trabalho anatómico que por vezes resvala num tom oratório, nos inquietar de novo com a ditadura do tempo, numa espécie de ataque ao destino onde a posteridade e a eternidade são capturadas pelo eterno retorno. Vejam-se, a título de exemplo, estes versos do canto segundo do Livro 4, Exemplo Próprio (p. 144):

Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?

Vamos pela vida arrastando essas noções
de nação, de cultura, de civilizações
- coisas estranhas, sem dúvida, à índole do mundo,
da fraternidade ou da natureza,
porém coisas talvez da ordem das coisas,
das fábulas ordinárias,
mas será que somos disto ou daquilo, que a verdade é essa,
que não escutamos senão de dois ouvidos
e há um país para a leitura
dos nossos mitos próprios
e que a alma não acende além do madeiro recebido
as parábolas que o auxílio sugere
e as volvem, quando deus morre, melhor árbitro do mundo?

E comparem-se agora com estes, do canto terceiro do Livro 9, Exemplo Coevo (p. 277):

Sabe-se que os homens são fracos, volúveis,
que esta terra é pequena e molesta,
e o bem e o mal apenas são esse tédio das euménides,
porque, em verdade, os justos não se revoltam,
as musas são imperturbáveis
e não pode haver Sodomas e Gomorras indefinidamente,
porque o homem olha e é Deus que se faz estátua.
Tal, se nos interrogamos sobre o sentido do desvelo
ou da violência, como ele as duas metades
do nosso corpo separa, dando metade
às nossas camas e a outra metade distribuindo
por estranhos como moeda pobre ou erva de Constantinopla,
o fundo tocamos de tal imprevidência e a abundância
que a vida reduz a essa conta divina: o âmago irreconhecível,
a casa, a mulher e tal dom da imaterialidade, da decifração.

Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?


Ora, do problema da identidade cultural, típico do homem exilado, à experiência aterradora da humanidade, que encontra no cidadão inevitável desassossego, repete-se uma mesma dúvida: «Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?» Mas esta dúvida já não é apenas do homem exilado nem do cidadão desassossegado, é dúvida do ser único e consistente que a ambos persegue num só corpo, o corpo do poeta. Ontológica, portanto, esta poesia, por nos remeter para questões universais e intemporais do ser a partir da experiência finita e efémera de um homem só. A leitura de João Vário exige, assim, uma predisposição para o pensamento que não se coaduna com uma mera fruição da linguagem, da expressão ritmada das palavras, com o espanto provocado pela erupção de imagens e metáforas. Se tivermos que chamar difícil a um poeta, seja a João Vário. Embora eu prefira o termo exigente.

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