quarta-feira, 14 de maio de 2014

GOSTOS...


Gostas de homens bonitos, ó Lésbia, ó minha querida (parva).
Relanceaste-me e armaste em tímida
como uma tímida que me fica à espreita.
Gostos não se discutem, eu discuto!
Não gosto de homens bonitos!
Gosto de homens curtidos
pelo mar, entre outros factores.
Lésbia (as mulheres são todas umas parvas...) eu sei que gostas de homens bonitos
sobre as ondas...
como tu - disseste-o há pouco e ainda me apontas!...
Agora explico:
Não gosto de homens bonitos, nem de bonitos homens.
Não gosto de homens bonitos.
Gosto de homens curtidos pela fealdade física da vida,
nem apolínea, nem dionisíaca,
mas de ambas.
Os homens feios - é questão de gosto -
têm, em geral, carácter,
uma beleza que se não vê
- Pulchrum est quod visum placet - disse S. Tomás de Aquino-Aristóteles.
Belo é o que me agrada
e me liga nos miolos, aos rins e ao núcleo lá no fundo.
Os homens bonitos podem ser famosos, garanhões e quase belos, mas não têm beleza.
A beleza reside no carácter
que irradia de um homem dito feio e o torna belo, um fim do mundo diário e renovado.
Os homens bonitos vivem em geral dos seus rendimentos, o que lhes não transmite nenhum capital,
são uns capitalistas avant la lettre de antes de depois.
Fazem a barba todos os dias por obrigação ou então depilam as pernas.
Se têm bigode, aparam-no de todas as maneiras e feitios, que é para agradar às mocinhas e às brotoejas,
de todos os feitios e maneiras,
em cima, em baixo, nos esconsos do além.
Se novos são béu-béus.
Se velhos, nem pensar nisso - retratos daguerreotipados, cheios de poeira e de simpática música.
- «Ó fulgor banal da mocidade» - disse Antero, sem exclamação...
Fulgor têm os homens ditos feios, mas com carácter, porque são o sal da terra.
E que a beleza deles fulgure a ponto dos bonitos desejarem ser mulheres,
se forem apenas bonitos, mas gostarem de mulheres.
Diagnóstico:
Homens bonitos - bananas, em geral.
Homens feios, estilo vulgares - espírito, vulgo alma ou um homem de carácter.
O resto é escória que pode incluir homens bonitos e feios.
Se o homem for apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo e for um homem de carácter, então é uma beleza
e eu gosto de uma certa beleza que pode haver nos homens bonitos,
quando os vejo à distância no écran do cinema.
Gostava aos 15 anos do Ramon Novarro - um bonito homem! -
por causa do Ben-Hur, dos Mares do Sul e do Último Pagão,
mas o Charlton Heston substitui-o com vantagem
passados 40 anos, que foram uma vida de xeque-mate com os tais homens bonitos.
Como homem bonito, gosto do Humphrey Bogart, da Anna Magnani, do Anthony Quinn, da Senhora Maria da Ribeira e do Chico d'Alfama.
Como homem sem carácter... eles são tantos... mijo!
O resto - repito, apenas para te fazer a vontade, ó Lésbia, não sejas parva! -
é o fulgor das ondas quando rebentam
e surgem das ondas em ruína homens bonitos,
homens do mar em tempos de naufrágio,
como o João Capelo Gaivota, irmão do Fernão.
Tu dizes, Lésbia, que eu sou muito directo e que sim e sopas...
Sou, graças a Deus, incapaz de flics-flics, vulgo intrujice.
Sou o que sou. Ecce Poeta!
Basta comparar o meu retrato aos vinte anos
com o que o espelho me retrata diário aos sessenta,
como a minha mulher-a-dias quando me chama o seu boneco velho...
mas tu, Lésbia, conheces-me... é tudo fita...
e não me olhes assim com esses maviosos olhos de trocista que levas uma lambada
e eu já disse, pronto, não gosto de homens bonitos!

19/6/76

Ruy Cinatti (n. 1915 - m. 1986), in 56 Poemas (1981). «A poesia de Ruy Cinatti, precisamente por ser essencialmente evocativa, por apontar em vez de descrever e, além disso, por lançar mão do natural nomadismo do homem para transpor uma realidade que infinitamente o transcende, permite diversas zonas de interpretação, todas elas verdadeiras, pelo menos em parte. Estamos em dar razão a Carlos Branco, quando afirma que a mensagem de Ruy Cinatti só se surpreende integralmente vista com uma perspectiva católica. / Mesmo quando fixa momentos transitórios, não é difícil notar por trás dos poemas a concepção cristã do homem (...). / Também é possível que se tenha vindo a verificar uma cisão entre a vida e a obra levemente crescente. Mas, nessa altura, nunca o poeta deixa de reconhecer e de se subordinar a "uma ordem mais alta do que a atingível pela exclusiva intuição poética". Essa subordinação é-nos dada por um sentido de fidelidade que supera a instabilidade emocional, criadora de Poesia: "Somos fiéis ao que queremos - E Deus ouve-nos por certo". / A arte de Ruy Cinatti tem-se tornado cada vez mais indirecta, cada vez mais alusiva, e daí o desaparecimento ou a obnubilação sofridos por concepções anteriormente enunciadas de uma forma mais explícita» (Ruy Belo, in Apontamentos sobre o nomadismo de Ruy Cinatti). «Um poeta de Fé, como Ruy Cinatti se afirma na sua poesia, é um poeta que acredita na realidade dos símbolos. (...) Por isso, porque acredita na realidade dos símbolos, Ruy Cinatti não necessita de os criar ou recriar na sua escrita. A realidade fala-lhe dos símbolos. A realidade é símbolo» (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos).

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