quarta-feira, 28 de maio de 2014

HÁ NOMES QUE FICAM


Há nomes que ficam, sem préstimo, nas agendas,
transitam de ano para ano por inerência
ou desleixo, por vezes o nome próprio
é uma referência obscura, e nunca houve apelido.
Os números, em poucos anos,
passam de mnemónicas a criptogramas,
indicam sem dúvida que nos cruzámos
com gente que se cruza connosco,
que trocámos telefones como se
trocássemos alguma coisa,
mas tudo muda, os conhecidos
tornam-se amigos e depois desconhecidos.
Estes nomes, posso riscá-los
como se fosse velho e eles mortos,
mas os números, como uma praga,
acumulam-se, escritos
com tintas diferentes
e por vezes nas letras erradas.
Não posso desfazer-me das agendas
nem começar uma todos os anos,
mas já não sou o mesmo:
os números observaram as minhas idades
e talvez pudesse agora marcar este
que não me diz nada
e contar tudo
a alguém que não se lembra de mim.


Pedro Mexia (n. 1972), in Duplo Império. «Os seus méritos foram justamente destacados por Eduardo Prado Coelho, afirmando que "Pedro Mexia instituiu um hábito, um conjunto de expectativas, uma autoridade, um tipo de escrita e de atenção, uma orientação literária, um gosto, que merecem ser reconhecidos e debatidos" (2000). (...) A apreensão da realidade, de onde parte esta poesia, é posta em causa por via da denúncia do ardil dos sentidos e do questionamento do sentido dos vocábulos ou dos símbolos utilizados para dizer essa mesma realidade. (...) Mas também podemos realçar a sua forte componente cinematográfica (as sequências de planos, em que alternam o grande plano, o plano de pormenor ou o plano de conjunto, a utilização dos raccords ou de diferentes ângulos de visão ou perspectivas) e ficar perante ela como perante um filme a que se assiste, um filme que nos assiste (...). Pedro Mexia propõe "abstracções biográficas" , em vez de factos, o que conduz ao apagamento ou diluição do sujeito na massa textual. Os factos tornam-se exemplos, o sujeito impessoaliza-se, os versos ganham um carácter objectivo em consonância,aliás, com a simplicidade e desejo de partilha reclamados como terreno da poesia, ao ponto de a memória se poder tornar, ao abrigo de uma espécie de "usucapião, pertença de outro." (...) Torna-se visível o facto de o Autor instituir como que um horizonte de segundo grau para os seus textos. Poesia como memória ou memória como exercício poético - não importa tanto decidir a ordem desses factores, afinal arbitrária, quanto assinalar que, logo à partida, Pedro Mexia situa os seus textos no domínio do poético e pratica uma certa nostalgia da poesia e da memória, como se fossem artes perdidas no tempo e os textos fossem a memória ou em memória de ambos» (José Ricardo Nunes, in 9 Poetas Para o Século XXI).

Sem comentários: