Já aqui pudemos constatar como uma anomalia fisiológica, no
caso a incontinência urinária, pode estar na origem de um pensamento filosófico
humanista e oferecer fundamentos para uma ontologia baseada em dados da
experiência física que, por via da reflexão, adquirem uma estrutura metafísica.
Sabemos como a matéria excrementícia fundamenta muita experiência ontológica, não
sendo novidade para ninguém a possibilidade do homem encontrar a sua essência
nos actos de defecar e de urinar (assim como se voltar para o sagrado, nostálgico
de uma pureza longínqua, a partir de meditações proporcionadas pela constatação
do seu fétido interior). Na poesia portuguesa, temos de boa memória a introdução
de Luís Adriano Carlos ao livro A Alegria do Mal – Obra Poética I 1979-2004, de
José Emílio-Nelson. Seria interessante reler um livro heterodoxo como Penis, Penis
(Bendita seja! A merda. Ânus.), não fosse ainda mais interessante recordar a
leitura que do mesmo foi feita pelo insigne ensaísta:
Em divergência com as mitologias literárias, a cosmogonia de
Emílio-Nelson começa na urina, a água da vida segundo a tradição medicinal. «Por
mim bebo o meu vaso de urina», eis a uroterapia de Penis, Penis, no poema «O
Festim».
Deixando de lado as funções terapêuticas do divino líquido,
cabe ressaltar o salto epistemológico aqui anunciado. Da ontologia para a
cosmogonia, da natureza do ser para a fundação do universo, numa torrente mictória
que faz do mijo uma espécie de átomo universal. O excremento é, desta forma, o
sexto elemento fundador de todas as coisas, já que o quinto era o éter e os
restantes quatro são sobejamente conhecidos: terra, água, ar e fogo. E toda uma
nova concepção da poesia nasce:
Com inteira evidência, as excreções renais constituem a matéria
do riso nesta poesia diurética, tal como as lágrimas são a matéria do desespero
na poesia sentimental.
O sublinhado é nosso. Portanto, ao versejar lacrimejante do poeta-carpideira propõe-se
a alternativa do poeta-mijão.
Mas convém desconstruir a aparência: as imagens urológicas não
exprimem senão a alegria do mal, evocando as lágrimas de urina como matéria do
riso desesperado que conhecemos da Histoire de l’Oeil de Bataille. Assim, ao
incorporar a matéria aquática do riso, a satiríase burlesca perfuma a atmosfera
com a catarse das suas substâncias tóxicas…
Cabe evocar a expressão popular “mijar a rir” ou, na sua
vertente porventura mais traumática, “mijar a chorar”, sobre a qual não se pode
ter a mesma imagem depois de ler Penis, Penis e a leitura proposta sobre parte
do seu referencial de sentido. Trata-se de uma problemática compexa,
originariamente formulada a partir do espanto do homem perante as suas próprias
capacidades. Xixi, cocó, mênstruo, langonha, ranho, baba, existem para ser
cantados como cantadas foram desde sempre as águas do olhar. Se dificilmente encontramos
poemas onde a versos do género “correm lágrimas sobre o meu rosto” se
sobreponham imagens do tipo “escorre-me o ranho do nariz” (ambos péssimos) isso
dever-se-á a uma expurgação estética, operada ao longo de muitos anos, que tem
que ver com a repulsa que o homem sente de si próprio quando confrontado com as
suas debilidades. Apesar de tudo, há nas lágrimas uma transparência, uma saúde,
que o catarro, espontaneamente associado à doença, não tem. Idealizada enquanto
transfiguração do belo, a arte só logrou representar o mundo quando aceitou no canastro
das suas construções a presença do feio. Porque isso que dizemos feio, o assimétrico,
o repulsivo, não só é parte integrante do mundo como é parte integrante do próprio
belo. Sobre a lisa pele das musas forma o tempo as suas rugas. A estética da
rugosidade foi muito bem trabalhada, por exemplo, por um cineasta como João César
Monteiro. Chamo-o à liça por ser nele que iremos encontrar uma capitalização do
abjecto (lembram-se da personagem que coleccionava pentelhos?) elevado a
representação satírica da criação do mundo (o título A Comédia de Deus devia
ficar para a história do cinema como A Divina Comédia ficou na história da
literatura). Recordemos o que escreve no seu diário parisiense a 9 de Agosto:
Acordo tarde (passa das 10) e cago cedo. Não estava à espera
que um cagalhão de cordeiro se avolumasse durante a noite, até ganhar as dimensões
de um cagalhão de bode. Difícil e espremida expiação, a deste ciclo digestivo. À
laia de último retoque, e para que seja maior o inesperado, deposito uma minúscula
caganita no fundo da sanita, após o que dou a tarefa por concluída. Passo de
seguida à habitual lavagem do cu, este aliás levemente dorido pelo esforço de o
esgarçar. / Começar um dia em que o nosso próprio cu nos dá vontade de rir (e
uma vontade de rir ligada à vontade de cagar) é, no mínimo, auspicioso.
Podemos interrogar-nos sobre a pertinência do primeiro parágrafo.
Que interessará ao leitor o ciclo digestivo de César Monteiro? Num diário com
Paris em pano de fundo, o cineasta resolve partilhar com o leitor a sua organização
intestinal. A resposta está no segundo parágrafo, aquele auspicioso é revelador
de um desprezo pelas convenções culturais que marca a imagem de uma obra herética. É o poder da imagem convertido em palavra escrita. A vontade de rir associa-se à vontade de cagar à laia de ars poetica, num
enquadramento que nos remete, por exemplo, para a mais emblemática das
personagens de James Joyce logo no início de Ulisses:
Abriu a pontapé a porta da casinha. Melhor tomar cuidado
para não sujar as calças por causa do enterro. Entrou, inclinando a cabeça por
sob o lintel baixo. Deixando a porta escancarada, em meio ao fedor da caiação
mofada e das teias poeirentas baixou os suspensórios. Antes de sentar-se espiou
por uma fresta a janela do vizinho. O rei estava em seu tesouro. Ninguém.
Refestelado no trono desdobrou o jornal virando as páginas
sobre os joelhos nus. Algo novo e fácil. Não há grande pressa. Demorar-se um
pouco. Nossa novidade premiada. O golpe-de-mestre de Matcham. Escrito pelo
senhor Philip Beaufoy, Clube dos Playgoers, Londres. Pagamento à razão de um
guinéu por coluna foi feito ao autor. Três e meia. Três libras e três. Três libras
treze e seis.
Calmamente ele lia, dominando-se, a primeira coluna e,
cedendo mas resistindo, começou a segunda. A meio, uma última resistência
cedendo, permitiu que os seus intestinos se aliviassem de todo enquanto lia,
lendo ainda pacientemente, toda ida aquela ligeira prisão de ventre de ontem. Espero
não seja demasiado grosso e provocar hemorróidas de novo. Não, está exacto. Assim.
Ah! Constipado, uma tablete de cascara sagrada. Vida podia ser assim. Aquilo
nem o agitava nem o comovia, mas era algo rápido e limpo. Imprime-se qualquer
coisa hoje em dia. Época idiota. Lia adiante sentado calmo sobre o próprio odor
montante.
Portanto, uma ida à casa de banho para aliviar a tripa permite à
personagem oferecer um palco ideal à constatação: «Imprime-se qualquer coisa
hoje em dia». Desconheço o original, mas podia ser Imprime-se qualquer merda
hoje em dia - versão que consistiria numa pertinente comparação entre o mundo
editorial e o acto de defecar, entrevendo-se no hemorroidal da personagem as
dores do Autor (o cagão) açoitado pelos tempos. Charles Bukowski foi pródigo
nestas comparações, disfarçando com a sua escrita directa uma dimensão metafórica
que se lhe reconhece quando lido mais atentamente. Em Bukowski, o objectivo ilude o abstracto. O conto Todos os Merdas do
Mundo e a Merda do Meu Cu é uma cosmogonia de inspiração cínica onde o cu
aparece enquanto microcosmo universal. Não é por acaso que a prosa faz-se
acompanhar de diversas alusões religiosas ao mesmo tempo que uma operação às
hemorróides, pautada por dores insuportáveis, o leva a caracterizar com
aforismos pungentes as dores do mundo que, a uma escala escatológica, são também
as do seu cu:
O tubo do clister estava sempre a sair e o quarto de banho
ficou todo molhado e estava frio e doía-me a barriga e já estava a afogar-me em
lodo e merda. Era assim que acabava o Mundo, não era com a bomba atómica, era
com merda, merda, merda.
E, mais adiante,
Não admira que as pessoas se virem para os deuses. Era muito
difícil aguentar aquilo como deve ser.
Não sabemos se foi o hemorroidal que levou valter hugo mãe a
escrever o derradeiro poema do seu livro Útero - «e sei que um dia / deus virá e
entrará, / como se / me entrasse pelo cu adentro // eu a voar pelos pássaros /
para os amanhecer» - mas dispensando o sentimentalismo enviesado dos dois últimos
versos, a verdade é que Deus é como a água: infiltra-se por qualquer frecha. Se
a dor o reclama, se a tristeza o apela, se a morte o produz (como queria
Nietzsche), a verdade é que ele pode muito bem entrar-nos pelo cu, estando este
esgarçado, ou pelo pénis, estando este açoitado pela infecção, ou por outro
orifício qualquer onde a excrementícia careça de purificação. Assim se constata
como facilmente a urina ou a merda nos levam à poesia e à filosofia, e como
de ambas logo chegamos a Deus: última estação de todas as derivas do pensamento. Mas a religiosidade sustentada pela relação do homem com a sua face abjecta também
encontra paralelo na identidade cultural e na política que nela se fundamenta. Terminemos,
pois, com parte do prefácio de Slavoj Žižek à edição francesa de Elogio da
Intolerância:
Numa célebre cena de O Fantasma da Liberdade, de Buñuel, as
relações entre o acto de comer e o de defecar são invertidas: as pessoas estão
sentadas em sanitas de casa de banho à volta de uma mesa, discutindo
amenamente, e quando querem comer, perguntam discretamente à dona de casa:
«Onde fica o sítio que bem sabe?», e escapam-se furtivamente a caminho de uma
pequena divisão das traseiras. É, portanto, tentador, à laia de complemento a Lévi-Strauss,
propor que a merda possa servir igualmente de matière à penser — ou não formarão
os três tipos básicos de casa de banho uma espécie de contraponto/correlativo
excrementício ao triângulo lévi-straussiano da cozinha? Nas casas de banho alemãs
tradicionais, o buraco onde o cocó desaparece depois de se puxar o autoclismo é
lateral, de tal maneira que o cocó começa por ser exibido aos nossos olhos para
melhor poder ser farejado e inspeccionado em vista da eventual detecção de
alguns indícios de má saúde; no modelo francês, pelo contrário, o buraco fica
bem ao meio e em baixo, o que significa que a merda deve desaparecer o mais
rapidamente possível; finalmente, a casa de banho americana (anglo-saxónica)
apresenta uma espécie de síntese entre as duas outras, uma mediação entre esses
dois pólos opostos — a sanita está cheia de água, de tal maneira que o cocó
flutua à superfície bem visível, sem que por isso deva ser examinado… (…) É
evidente que nenhum destes modelos pode ser explicado em termos estritamente
utilitários: podemos distinguir claramente em cada um deles uma certa percepção
ideológica da maneira como o sujeito deverá relacionar-se com o desagradável
excremento que provém do interior do seu corpo. / Hegel contou-se entre os
primeiros a interpretar o triângulo geográfico Alemanha-França-Inglaterra como
expressão de três atitudes existenciais diferentes — a minúcia reflectida alemã,
a irreflexão revolucionária francesa e o pragmatismo utilitarista moderado inglês;
podemos ler do seguinte modo o triângulo em termos de atitude política: o conservadorismo
alemão, o radicalismo revolucionário francês e o liberalismo moderado inglês (…).
A referência às sanitas permite-nos não só discernir o mesmo triângulo no domínio
íntimo que é o da função caca, mas também determinar o mecanismo subjacente do
triângulo em causa nas três diferentes atitudes perante o excesso excrementício:
o fascínio contemplativo ambíguo; a tentativa precipitada de se desembaraçar do
desagradável excesso da maneira mais rápida; a abordagem pragmática que consiste
em encarar o excesso como um objecto comum a suprimir de maneira apropriada.
Eternos aliados dos ingleses, herdeiros da Revolução
Francesa, títeres actuais da Alemanha, os portugueses encontram aqui a
representação perfeita da encruzilhada onde se encontram. É certo que as nossas
casas de banho tendem a replicar o modelo de sanita francês, mas a verdade é
que, há pouco habituados a coisas de higiene, os portugueses mantêm com a moita
(exemplo de chico-espertismo) e com o tradicional “cá vai disto” (noção
particular de espaço comum) um elo cultural bastante forte. Assim sendo, não
nos admiremos da política latrinária que nos conduz. Entendê-la, levar-nos-á a
respeitá-la no que tem de filosófico, poético, literário, cosmogónico, enfim
artístico.
4 comentários:
Extractos do prefácio de Túa Blesa à obra completa de Leopoldo María Panero, poeta para quem cagar era o sublime acto de "desenrolar a anaconda". Lindinha a imagem :):
"(...)Também violenta é a opção do poeta em não renunciar a
nenhum dos registos verbais, mormente àqueles que mais
deliberadamente são excluídos da prática poética. Do seu
léxico fazem partem vocábulos tão bas found como “tigre” (em
argot carcerário “retrete”), “urina”, “merda”, e tantos outros, numa
clara intenção de tudo incluir: desde as falas mais baixas e
vulgares das diferentes linguagens sociais até às consideradas
mais elevadas. Umas e outras palavras revelam-se no fim
apenas como aquilo que são: signos, e enquanto tal, idênticos,
mostrando-nos que aquilo que as diferencia não se inscreve
em qualquer parâmetro linguístico mas no pressuposto do
chamado “bom-gosto”, i.e., no que a ordem social dita e impõe.
Tudo isso é aqui desmascarado e ridicularizado. Toda “a ridícula
teoria literária que faz da palavra “poética” a sua pedra angular,
quando não o seu único material, o seu monólito.” "
"(...)Igualmente no discurso amoroso Panero corre elevados
riscos. A expressão do desejo faz-se, muitas vezes nestas
páginas, de “todo um catálogo de amores que se excedem,
que se subtraem à norma, que é o mesmo que dizer, anormais”.
À violência própria das relações (mesmo das mais normatizadas),
acrescem as alusões a uniões sexuais silenciadas,
quando não consideradas enfermas. Como o beso negro de
tantos dos seus versos ou as diversas referências à coprofilia,
desde a “chuva dourada” (“unimos a nossa urina numa única
taça/ e bebemos os dois com a alegria de um menino?//”, O fim
de Anacreonte, Dioscuro), à “chuva de lama” (“mais que nunca riste/ agora que este ridículo suporte da minha alma/ se desfaz
no leito como quando cagavas/ em cima do meu rosto…”,
Aquele que Feriu a sua Mãe, Dioscuro)."
Muito agradecido pela nota de rodapé. :-) Excelente.
E eis como se explica que as moscas sejam os transístores de Deus. Jorge Melícias, fui à sua procura na googleta e dei com eles no sítio. Muito obrigada aos quatro.
"As moscas são os transístores de Deus."
Excelente verso, Marina Tadeu.
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