terça-feira, 13 de maio de 2014

MEMORANDO


Senhor:
Se o meu tempo é de campos de concentração,
De bombas de hidrogénio e de maldição.
E de cruéis tiranos
Com pêlos nos ouvidos e no coração,
Que ando eu a fazer aqui,
Funâmbulo de angústia
Com miragens de esperança?
Pois que não há lugar neste universo imundo
Para bucólicos prados de trigo e calhandras,
E foguetes festivos,
E chefes que eu eleja e destitua,
Corta lá no canhenho do destino
A humana condição de ser poeta!
Sinto em nome de todos que se calam
As vergastadas de absurdo e medo
Que consentes na alma dos mortais.
E como nada posso, senão isto:
Protestar, protestar,
Desta maneira inútil que tu vês
E o rebanho pressente,
Risca na ardósia dos obreiros laicos,
Que procuram sentido à tua obra,
O sagrado condão de dedilhar
Nas grades da gaiola que fizeste
Quando eras rapaz
E mal sonhavas quanto mal fazias.
Jovem deus criador,
Assombrado de cada imperfeição
Do barro da olaria,
Ias doirando esses desenganos
Com milagres gratuitos e originais.
Saía-te das mãos, cercada de incertezas,
A redonda amargura deste mundo;
Que remédio senão alguns harpistas
A entoar harmonias ideais!
Mas o tempo passou. Envelheceste.
Morreu-te a fantasia.
E queres a repressão dos que te negam
Ou te corrigem.
Eu e outros, perdidos neste inferno
Onde nenhum Plutão nos ouve ou nos tolera,
Somos a consciência atormentada
Pelos anjos-da-guarda que te servem,
A trair os irmãos, tão condenados
Como eles.
Por caridade, pois,
E divina lisura,
Apaga lá no céu
A luz que representa
A vida destas pobres criaturas
Cuja missão traíste, por decrepitude.
Bardos da luz que punham nos teus olhos
E da graça do mágico universo
Que generosamente
Como um pomo irreal viam na tua mão,
Rangem agora os dentes de revolta
A falar de injustiça,
De igualdade
E de amor,
Coisas que já nem tu
Sabes que valores são.
Risca! Risca no livro etéreo
O infeliz e belo
Nome de Orfeu!

Coimbra, 16 de Dezembro de 1952.

Miguel Torga (n. 1907 - m. 1995), in Diário VI (1953). «A obra de Miguel Torga procura banhar num ambiente de mitos agrários e pastoris que da sua origem aldeã transmontana remontam aos símbolos bíblicos. A semente, a seiva, a colheita, a água, a terra, o vento, o pão, o parto, o pastoreio, Adão e Eva, por exemplo, recorrem nos seus livros como se fossem, não ideias, mas imagens irradiantes. (...) A sua poesia exprime os mesmos mitos agrário-pastoris, mas de um modo simultaneamente mais genérico e mais pessoalista, e é percorrida por apóstrofes e reptos ao Criador do «homem de carne e osso», do «arbusto de dois pés», Adão universal, multiplicado e sempre redivivo pela procriação apesar da morte, ascendendo titanicamente desde a lama para um sentido terreno da vida, através de todos os erros e egoísmos que o tornam inimigo e explorador de si próprio. Essa poesia reflecte ainda as apreensões, esperanças e angústias do seu tempo, dentro do seu «titanismo» individualista e, no fundo, religioso de visão, e a sua pureza e originalidade rítmicas, a coerência orgânica das suas imagens impõem-se. (...) Algumas das mais densas poesias de Torga estão contidas no Diário (16 vols., alguns refundidos. 1941-93), que pode ser considerado uma continuação, sob outra forma, do romance de fundo autobiográfico A Criação do Mundo» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa).

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